Belém, 23 de julho de 2018.
No ônibus. Minha esposa e eu circulando para o centro da cidade, mês de julho de trânsito em bom fluxo. Poucos carros, pouca gente no coletivo e ao som de canções que embalaram as serestas dos anos 1970, 1980 e os saudosos das tertúlias. Um senhor de mais ou menos setenta anos senta no banco da frente ao nosso, nos olhando sorridente. Parece que testava a nossa receptividade de sorrir também.
Troca a música.
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"...Eu queria ter asas/ pra voar pra bem longe daqui/ você me chamar de bandido/ são coisas que não vou resistir...".
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- Quem diria que eu conheci o Marcelo Cleyton, que canta essa música. Assim é a vida, às vezes a gente tá por cima, às vezes nem tanto. Tem que saber dosar.
Viramos nossa atenção ao homem. Ele virava o corpo para nos explicar. Do nada.
- Tempo bom, que eu ia da Marambaia para a Sacramenta a pé pra festa. Não tinha esse negócio de violência. Ia e voltava.
Reparei que ele tinha uma tatuagem no braço esquerdo. Um coração flechado. Um olhar sempre voltado para o longe... distante mesmo.
- Além do Marcelo Cleyton, conheci um outro bom tocador, esse de sanfona, Adeládio, chamado uma vez pra tocar com o Luiz Gonzaga quando este veio pra Belém. Mas a cachaça não deixou vingar a carreira. Se acabou cedo. Veio do interior, assim como eu vim, só que eu vim do Bom Jesus do Tocantins.
- O senhor é trabalhador rural?
- Sou sim, da roça. Tu viste a menina que tá cantando na televisão que veio do Tocantins? Do interior?
- Não vi não senhor.
- Ela veio mesmo os outros dizendo que não dava certo essa história de cantar. É isso que eu falo pra todos eles, ó, tem que acreditar no teu sonho rapá! Pára de ir só na base do que os outros falam! Acredita em ti! Tenha fé em ti! Tenha fé na tua força que tu vai avançar! Porque a pior coisa é o sedentarismo! Ficar parado? Acomodado? Sedentário? Te mexe! Pega teu amor, leva pra uma churrascaria! Vai passear! Não fica parado!
Era o discurso de uma vida. Com emoção. Com a soma de todos os anos de vida na pupila.
Desceu do palanque do discurso. Aterrissou. Minha esposa perguntou carinhosa:
- Como é seu nome?
- Miguel. Desculpe se atrapalhei.
- Nunca seu Miguel. Aprendemos muito com o senhor.
Uma senhora ocupou a cadeira ao lado dele. Acho que ele se intimidou. Virou-se para frente e em silêncio ficou enquanto o ônibus passava pela paisagem esverdeada da Praça Brasil.
Reparei nos cabelos brancos. Na boca tremendo. Tenho certeza que queria discursar até acabar o mundo. Nos despedimos quando descemos.
- Vão em paz meus jovens.
Ali tinha uma crônica. Tinha que fazê-lo em agradecimento ao seu Miguel pelos conselhos. Que título daria?
Marcelo Cleyton sugeriu na minha cabeça:
- Eu queria ter asas...
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