Belém, 6 de março de 2023.
Carlos Augusto Pantoja Ramos[1].
Na oportunidade da visita ao Pará da Ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva e sua equipe, agendada para os dias 6 e 7 de março de 2023[2], respectivamente em Soure e Belém, apresento uma breve organização de ideias como colaboração ao debate sobre justiça climática na Amazônia. São propostas que vem das experiências que tenho acumulado desde 2018, quando do conhecimento sobre o caso de comercialização de créditos de carbono na Reserva Extrativista do Mapuá, de Breves, Marajó[3]. Passados quase cinco anos, percebi que deveria concentrar-me em duas frentes nestas análises: a) aquela voltada para o aperfeiçoamento do mercado de carbono privado (soa para mim mais verdadeiro do que “voluntário”) para a garantia do respeito aos direitos dos povos da floresta; b) outra direcionada para auxiliar na luz das discussões de que o serviço público, o Estado Brasileiro, deve ser um fomentador de pagamento por serviços ambientais maior que a oferta que faz o mercado privado.
No primeiro caso, do mercado privado de carbono, que intenciona ter forte influência muitas vezes em florestas públicas e coletivas em que vivem centenas de comunidades tradicionais, cujo caso de Portel é alarmante[4], reitero as nove recomendações que publiquei em julho de 2021, assim voltadas para as famílias agroextrativistas:
1. Estudem a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que trata dos direitos de povos tribais e comunidades tradicionais;
2. Fortaleçam-se em atualizar seus Planos de Uso dos Recursos Naturais/Planos de Gestão territorial para que este simples documento possa lhes garantir direitos sobre determinadas espécies florestais e agroflorestais;
3. Construam seus protocolos comunitários de consulta prévia, livre e informada para que assim possam ter uma ferramenta que lhes sirva de escudo jurídico e judicial em caso de se sentirem lesados; tal protocolo precisa ter a mesma intensidade de comunicação para fora e para dentro da comunidade;
4. Estudem suas florestas e a capacidade destas em proteger o clima, animais e plantas; realizar inventários florestais é um ato que deve ser do conhecimento e da prática da comunidade para que esta diga com legitimidade sobre a riqueza natural existente na região; tenham seus próprios técnicos de confiança;
5. Tenham sob seu domínio o Cadastro Ambiental Rural de fato, sabendo seus objetivos e seu zoneamento socioeconômico e ecológico; afinal, não é vosso território?
6. Tenham o acompanhamento jurídico da defensoria pública ou de advogados comprometidos com a justa relação entre as partes que estão discutindo créditos de carbono; é importante entender que se trata de um jogo internacional, onde as tratativas muitas vezes saem da alçada das leis nacionais (em outras palavras, envolvem empresas "de fora");
7. Percebam que tudo que é tratado com a palavra PREÇO pode afetar aquilo que vocês possuem de VALOR; a memória das famílias, seus ancestrais não têm preço, tem valor; uma procuração dada a terceiros pode colocar comunidades em má situação seus valores;
8. Comprometam-se com as novas gerações, pois os acordos firmados vão impactá-las seja positivamente, seja negativamente; tenham em conta isso antes de assinar os papéis;
9. Em caso de dúvidas, perguntem às suas instituições e técnicos de apoio; não se envergonhem de perguntar: é melhor começar na dúvida e terminar na certeza do que o contrário.
Além destas recomendações para o mercado privado, eu teria uma décima: de garantia da participação e empoderamento do tema pelas mulheres e jovens das comunidades. Não me parece certo um assunto tão importante, que envolve gerações, ser decidido por poucas pessoas da comunidade. O senso de coletividade deve predominar e proteger as lideranças dos assédios.
Em relação ao serviço público, creio ser imprescindível atentar para algumas questões que podem equilibrar o jogo quanto à narrativa sobre quem deve protagonizar o pagamento por serviços ambientais. Sempre é bom lembrar o artigo 2º, Inciso V da Lei 14.119, de 13 de janeiro de 2021: “... pagador de serviços ambientais: poder público, organização da sociedade civil ou agente privado, pessoa física ou jurídica, de âmbito nacional ou internacional, que provê o pagamento dos serviços ambientais...”[5]. Nesse sentido, faço reflexão que:
1. É essencial que a população, sobretudo das florestas, campos e rios da Amazônia saibam que existem 2 caminhos: aquele ligado às instituições governamentais, do serviço público e aquele do mercado privado.
2. Se procurarmos na internet, haverá conceitos que diferenciam 2 mercados de carbono em: a) mercados regulados; b) mercados voluntários. Aí está o equívoco: mesmo o mercado de carbono voluntário ou privado (assim que temos que chamar) precisa ser regulado, em respeito às leis de proteção dos territórios e modos de vida dos povos da floresta como assim dita a Lei 14.119 da política nacional de PSA; caso contrário, abriremos portas para o rentismo que extrai valor sem aumentar ou contribuir para a produção (DOWBOR, 2021)[6], enriquecendo sobretudo quem está no jogo especulativo das bolsas de valores.
3. Uma vez que o serviço público assuma seu dever na discussão sobre justiça climática, mecanismos devem ser pensados para gerar resultados na vida da população.
4. Entendo que é preciso atacar em 4 frentes para nos ajudar no processo de adaptação aos efeitos da crise climática: a) dar dignidade e condições para aqueles que protegem a floresta, rios, mares e campos naturais continuem sua missão, protegendo seus territórios e dando-lhes acesso a políticas públicas dignas; b) de maneira transparente e justa para realizar o pagamento por serviços ambientais e acesso ao crédito rural socioambiental para quem exerce a agricultura, principalmente a familiar; c) realizar a reparação aos municípios e comunidades afetados pela crise climática causada pelo capitaloceno (MOORE, 2016[7]; INSTITUTO HUMANITAS, 2020[8]); d) rever o orçamento público brasileiro, aumentando-se o percentual de investimento em áreas como educação, saúde, saneamento básico e gestão ambiental, hoje atropeladas pela farra da Dívida Pública a enriquecer credores em enquanto o país segue afundando em desigualdade social[9].
5. No pagamento por serviços ambientais, é preciso adequar e fortalecer o programa Floresta + gerenciado pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas de modo que cheguem recursos para a agricultura familiar, comunidades tradicionais e comunidades de zonas urbanas e periurbanas.
6. Em caso de trazer-se novamente instrumentos de transferência direta de renda como mecanismo de pagamento por serviços ambientais como assim experimentamos com o bolsa-verde, é estratégico que haja plano de comunicação que explique para a população dos objetivos da bolsa-verde como parte de educação ambiental. Não subestimemos as pessoas em compreender a importância e os motivos de um auxílio que possa ajudar na proteção da natureza.
7. Além de pagamento por serviços ambientais, julgo necessário que iniciemos estudos para garantir a reparação de danos aos municípios causados pelos efeitos das mudanças climáticas; não é culpa de Afuá nem de Soure, ambos da mesorregião do Marajó, fazerem parte dos municípios com maior vulnerabilidade socioambiental da costa paraense (SANTOS et al, 2021)[10]. É preciso avaliar quais mecanismos em seus repasses federais aos municípios podem ser adaptados para diferenciar recursos para localidades que já sofrem com os efeitos destas mudanças.
8. As universidades públicas e os institutos federais precisam estar presentes em tais discussões sobre o valor da floresta para o clima no planeta; realizar inventários florestais e propor equações é um ato que deve ser do conhecimento e prática de estudantes, pesquisadores e comunidades para nos empoderarmos em dizer que outras variáveis são também essenciais de serem consideradas como a evapotranspiração, a biodiversidade e a cultura ancestral dos povos.
9. É imprescindível que a sociedade civil brasileira e órgãos de governos comuniquem às maiores empresas certificadoras do mercado de carbono no mundo como a VERRA que esta precisa respeitar as leis nacionais de ordenamento fundiário; é mister também explicar às certificadoras sobre os limites do Cadastro Ambiental Rural, não podendo ser este utilizado como documento da terra.
Finalmente, precisamos ser francos: sem rever as bases do capitalismo instalado entre as nações, não resolveremos os problemas relacionados à crise climática. Como num estágio de negociação em meio ao luto da Humanidade por reconhecer que é mortal, o lado humano tomado pelo capital busca nos convencer que a caminhada do sistema que ajudou na perfuração do primeiro poço de petróleo em 1859 (ALTMAN, 2020)[11] pode ser a solução da crise instalada, inclusive trazer soluções ambientais, quando o mesmo sistema é responsável direto pela degradação de florestas, rios, clima e de extinções em massa.
Na disposição sempre de pensar o futuro dos Amazônidas, assim concluo estas contribuições para a equipe do MMA que se reunirá na sede da Fetagri/CONTAG/CUT em 7 de março de 2023.
Notas:
[1] Engenheiro Florestal, escritor, consultor ecossocial, Mestre em Ciências Florestais pela Universidade Federal Rural da Amazônia, mentor de crédito socioambiental do Instituto Conexsus e aluno do curso de doutorado do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares da Universidade Federal do Pará. Em 2017, Carlos Ramos recebeu a medalha de mérito ambiental da Assembleia Legislativa do Pará.
[2] O Liberal assim informou a visita da ministra: Ministra Marina Silva tem agenda no Pará nesta segunda-feira com presidentes do Ibama e ICMBio. Ver em https://www.oliberal.com/politica/ministra-marina-silva-tem-agenda-no-para-nesta-segunda-feira-com-presidentes-do-ibama-e-icmbio-1.653315 .
[3] Publiquei a primeira carta sobre os créditos de carbono, elaborada em 2018 com avaliação do processo de comercialização de créditos de carbono na Reserva Extrativista Mapuá, Breves, Marajó, Pará. Ver em https://www.recantodasletras.com.br/e-livros/7050930 . Vale a pena conferir a publicação de ANJOS, Anna Beatriz. Em Marajó, comunidades questionam venda de créditos de carbono sobre seu território. Agência Pública, publicado em 17 de dezembro de 2021. Disponível em https://apublica.org/2021/12/em-marajo-comunidades-questionam-venda-de-creditos-de-carbono-sobre-seu-territorio/. Acesso em 18 de dezembro de 2021.
[4] Recomendo duas leituras sobre a comercialização de créditos de carbono em Portel: WRM. Neocolonialismo esverdeado na Amazônia: os projetos REDD em Portel. 2022. Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM). Disponível em https://www.wrm.org.uy/pt/publicacoes/neocolonialismo-na-amazonia-projetos-redd-em-portel-brasil . Acesso: 05/01/2023; e a publicação de SABRINA, F. Empresário norte-americano vende discurso ambiental, mas lucra com terras públicas e gera conflitos entre ribeirinhos no Pará. Publicado em 10 de novembro de 2022. The Intercept Brasil. Disponível em https://theintercept.com/2022/11/10/com-discurso-ambiental-empresario-norte-americano-lucra-com-terras-e-ilude-ribeirinhos-no-para/ . Acesso: 16/12/2022.
[5] BRASIL. Lei 14.119, de 13 de janeiro de 2021. Institui a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais; e altera as Leis n os 8.212, de 24 de julho de 1991, 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, e 6.015, de 31 de dezembro de 1973, para adequá-las à nova política. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14119.htm . Acesso: 27/12/2022.
[6] DOWBOR, L. Quem produz e quem se apropria: o poder do rentismo. Publicado em 25 de fevereiro de 2021. Diplomatique Brasil. Disponível em https://diplomatique.org.br/quem-produz-e-quem-se-apropria-o-poder-do-rentismo/ . Acesso em 27/12/2022.
[7] MOORE, JASON W. Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism, Oakland: PM Press, 2016.
[8] INSTITUTO HUMANITAS UNISINO. Antropoceno ou Capitaloceno? Publicado em 16 de julho de 2020. Disponível em https://www.ihu.unisinos.br/categorias/601014-antropoceno-ou-capitaloceno . Acesso: 22/01/2023.
[9] AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA. Gasto com dívida pública sem contrapartida quase dobrou de 2019 a 2021. Publicado em 15 de fevereiro de 2022.Disponível em https://auditoriacidada.org.br/conteudo/gasto-com-divida-publica-sem-contrapartida-quase-dobrou-de-2019-a-2021/ . Acesso em 15/02/2023.
[10] SANTOS, M.R. da S.; VITORINO, M.I.; PEREIRA, L.C.C.; PIMENTEL, M. A. da S.; QUINTÃO, A.F. Vulnerabilidade Socioambiental às Mudanças Climáticas: Condições dos Municípios Costeiros no Estado do Pará. Ambiente e Sociedade, São Paulo. Vol. 24, 2021.
[11] ALTMAN, Max. Hoje na História: 1859 - Perfurado o primeiro poço de petróleo nos EUA. Opera Mundi, publicado em 27 de agosto de 2020. Disponível em https://operamundi.uol.com.br/hoje-na-historia/5976/hoje-na-historia-1859-perfurado-o-primeiro-poco-de-petroleo-nos-eua. Acesso em 15/02/2023.
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