quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Crônicas do Corte: créditos para nossa geração

 




Crônicas do Corte: créditos para nossa geração[1]

Carlos Augusto Pantoja Ramos[2]

 

Hoje em dia muito ouço falar em Crédito, palavra que faz parte do meu trabalho e que mais cedo ou mais tarde me faria pensar mais profundamente sobre seu significado, curioso forçado que sou pela desobediência em trabalhar. Crédito deriva do latim creditum, “algo emprestado, objeto passado em confiança a outrem”, particípio passado de credere, “acreditar, confiar”[3]. Ou seja, trata-se de uma “coisa confiada”, frequentemente associada com transações bancárias, empréstimos, e no caso de uma das minhas atuais funções, de buscar que famílias agroextrativistas do Marajó tenham acesso ao crédito bancário por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf.  Neste caso, bancos públicos como Banco da Amazônia e Banco do Brasil “acreditam”, “confiam” nas famílias e emprestam dinheiro para pagamento posterior, mediante apresentação de um projeto produtivo viável e o estabelecimento de prazos, carências, amortizações e mesmo sanções caso não honrem com a “coisa confiada”.

Ainda sobre créditos bancários, seja de bancos públicos ou privados, tal relação de confiança nos apresentou décadas a privilegiar a agropecuária, cujo “acreditar” potencializou commodities que enriqueceram empresários e fazendeiros, ao passo em que dinamizou o desmatamento na Amazônia e no Cerrado. De acordo com o Repórter Brasil, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES nos anos de 2012, 2016 e 2017 apoiou financeiramente frigoríficos que foram responsáveis pelo abate de, pelo menos, 11 mil bois provenientes de fazendas embargadas pelo Ibama e 1,5 mil animais criados em propriedades que estavam na “lista suja” do trabalho escravo no Brasil[4]. Contraditoriamente, no limiar de intenção para uma mudança de paradigma, segundo o levantamento do Instituto Escolhas, ativos do FNO gerenciados pelo Banco da Amazônia somaram em 2020 cerca de R$ 33,8 bilhões que poderiam ser dirigidas para o fomento da agricultura familiar e da geração de bens oriundos da sociobioeconomia. Apesar do montante, o Instituto Escolhas apontou que 45% destes recursos foram direcionados para a agropecuária[5], atividade que já tinha sido apontada pela FAO como a causadora de 70% do desmatamento na América Latina no período entre 2000 e 2010[6]. Não aprendemos? O crédito bancário para a Amazônia permanecerá desacreditado em sua relação com a proteção da floresta e sobrevivência de seus povos[7]?

Em relação às outras formas de uso da palavra crédito, desta vez no manejo florestal, “a coisa confiada” do volume de madeira licenciado nos planos de manejo também necessita de uma franca discussão. A desconfiança de muitas pessoas em relação a atividade florestal madeireira levou ao “acreditar” em operações que muitas vezes utilizaram os créditos emitidos por autoridades ambientais, muitas vezes em desacordo com o que a ciência recomenda para o manejo florestal de madeira. Isso implica inclusive a relação entre empresas do setor florestal e comunidades.

Como exemplo, a partir da coleta de dados do SIMLAM que realizei em 2021, verifiquei que de 54 Autorizações de Exploração Madeireira - AUTEFs emitidas pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade do estado do Pará- SEMAS no período 2010-2020 em benefício de parcerias entre associações/cooperativas e empresas do setor, 23 delas (42%) possuíam evidências de serem planos de manejo de uma a duas Unidades de Produção Anuais - UPAs[8]. Ou seja, a retirada de toda a madeira desejada em um ano ou dois, desconsiderando, portanto, para respeitar o ciclo de corte (que varia de 25 a 35 anos de retorno para uma área explorada), uma das ações essenciais para diminuir a pressão sobre a flora e fauna locais. Fico, pois, a imaginar como se dá essa relação da quantidade de UPAs em planos de manejo puramente empresariais. Assim, para a floresta, “aquilo confiado”, o crédito de volume de madeira, manifesta nas contradições na própria forma de órgãos ambientais licenciarem uma atividade altamente impactante como o manejo florestal madeireiro.

Felizmente, o manejo florestal madeireiro praticado em Unidades de Conservação Federais, como as reservas extrativistas Verde-Para-Sempre (Porto de Moz) e Mapuá (Breves) cada vez mais se fortalecem ao ter a gestão dos créditos oriundos do licenciamento ambiental sob a liderança das próprias comunidades.  Nestes casos, a floresta está confiada às famílias locais e a sociedade brasileira precisa conhecer seus resultados de geração de renda, trabalho e conservação dos recursos naturais.

Seguindo no raciocínio de Creditum, testemunhei a elaboração da Instrução Normativa no. 9, de 30 de dezembro de 2013, que estabeleceu a criação da Declaração Ambiental e do Relatório Ambiental Anual, a fim de autorizar atividades de manejo, extração e produção de palmito e frutos da espécie açaí, realizados em florestas nativas de várzeas por populações agroextrativistas no Estado do Pará[9]. Foi a primeira vez que famílias agroextrativistas tiveram a oportunidade de ter acesso à autorização para extrair palmito, atividade que por décadas esteve nas mãos de fábricas de palmito, onde não raras vezes se configurou o trabalho análogo à escravidão[10]. Nesta espécie de crédito, as declarações que passaram a informar a quantidade de palmito advinda do manejo de açaí estavam nas mãos de quem vive, mora na terra e maneja seus açaizais. Algo recente na história paraense e que julgo ser uma quebra de paradigma, dando chance às pessoas que vivem dos frutos do açaí serem creditadas por sua capacidade de proteger as matas de várzea.

Por fim, queria dedicar algumas linhas para o crédito de carbono, crédito que ganhou força relevante nos meios de comunicação e no mercado nos últimos três anos, dentro de um contexto de tragédias humanas e ambientais sem que pudéssemos contar com o Estado Brasileiro minimamente capaz de seguir seus deveres republicanos de nos ajudar a estar presentes com condições de equidade, isonomia e inclusão digital parelha à “mão invisível do mercado” que tramava a financeirização da natureza.

Na carta aberta que escrevi sobre o Metaverso Agrário[11], compreendo que as disputas territoriais terão cada vez mais ricos ou pessoas acima da linha da cobiça com o perfil de jogadores de apostas virtuais, afastando-se da imagem do fazendeiro de grãos e seu chapéu característico; haverá CEOs[12] tranquilamente operando créditos de proteção da floresta em favor de acionistas, de donos de capital, nos enxergando como subalternos ou riscos gerenciáveis de sua empreitada. E lembram que falamos de “aquilo confiado”? Pois é, a opinião pública espera e acredita que tais movimentos financeiros possam evitar, por exemplo, desmatamentos na Amazônia e assim contribuir nas ações de enfrentamento e adaptação às mudanças climáticas, causadas pelos métodos industriais nos últimos 200 anos. Porém, um escândalo envolvendo a certificação de créditos de carbono em todo o planeta começou a circular desde 18 de janeiro de 2023. A matéria conjunta dos jornais Die Zeit (Alemanha), The Guardian (Inglaterra) e SourceMaterial, expuseram que grandes corporações de nível global como Netflix e Ben & Jerry's, estão investindo bilhões em uma indústria compensadora de emissão de carbono cujos números parecem cada vez mais conflitantes com a realidade[13].  

Na análise realizada pelos portais de notícias anteriormente mencionados, de quase 100 milhões de créditos de carbono avaliados, descobriu-se que apenas uma fração deles resultou em reduções reais de emissões de gases do efeito estufa. A matéria levanta sérias questões sobre os métodos e padrões estabelecidos pela maior certificadora de créditos de carbono no mundo, a empresa Verra. Multinacionais como a British Airways e Gucci contam com a Verra para autenticar seus créditos, que aprova três em cada quatro operações de créditos de carbono globalmente segundo essa matéria. A investigação da SourceMaterial lança dúvidas sobre um grande número de créditos de carbono da Verra, levantando a perspectiva de que um mercado de US$ 2 bilhões previsto para se expandir rapidamente, é amplamente baseado em alegações exageradas. O mais absurdo é a constatação de que 94% de créditos de carbono comprados por Disney, United Airlines, Air France, Samsung, Liverpool Football Club, Ben & Jerry's, Netflix e Chevron podem não valer nada, assim aponta a SourceMaterial.

Vejam, não foi por falta de aviso de outros canais de notícia sobre a possibilidade de existir uma “bolha” de créditos de carbono. Andrés Liérvano em publicação na Agência Pública e Centro Latino-Americano de Jornalismo Investigativo (Clip) concluiu que a venda de créditos de carbono gerenciadas por empresas a partir da Floresta de Matavén, no leste da Colômbia[14], são de pouca efetividade e mais úteis para especulação no que refere a redução de emissões. O sistema de certificação da Verra possui na sua metodologia o cálculo das toneladas de carbono das áreas de desmatamento evitado, relação de 1 crédito = 1 tonelada de carbono. Assim, se um projeto prevê que mil hectares seriam desmatados num determinado ano e no final 500 hectares são efetivamente cortados, a diferença dos outros 500 hectares é o que se pode apresentar como “desmatamento evitado” e ser traduzido em toneladas de carbono a serem vendidas como crédito. Mas, e se por exemplo, o mesmo projeto prever o desmatamento de 3 mil hectares por ano e se manter os 500 de corte, a diferença seria muito maior, 2.500 hectares intactos. Como a planilha está com as empresas intermediárias e seus investidores e não sob controle social, como saber o que é o que realmente está acontecendo e a quantidade de créditos mais correta a trabalhar?

Completando o questionamento sobre a comercialização de créditos de carbono da floresta de Matavén, é preciso entender que a metodologia da empresa Verra também se baseia na escolha de uma área que funciona como referência para cenários possíveis, mostrando o que aconteceria na área certificada se não houvesse o projeto Redd+. Esse componente é bastante utilizado pela certificação Verra no cálculo sobre as toneladas de carbono. No caso do projeto Redd+ de Matavén, este tem como referência ou linha de base para uma faixa de 1,4 milhão próximas às estradas e outras formas de acesso ao restante da Colômbia, com diferentes proprietários de terras que inclui desde terras privadas, terras devolutas estatais até reservas indígenas. Umas das cidades próximas, San Jose Guaviare, eu conheci em 2019 e pude verificar que é uma região de expansão agropecuária e de existência de conflitos agrários tal qual vivencio em muitas localidades do Pará. Acontece que a Floresta de Matavén é uma área remota que só pode ser alcançada por meio fluvial ou aéreo, não tem prevista a construção de estradas, o que facilitaria a entrada de madeireiros e é um território indígena, gerenciado pela Associação de Conselhos e Autoridades Indígenas Tradicionais da Selva Matavén, mais conhecida como Acatisema, desde 2003. Ninguém em sã consciência ambiental pode se negar a apontar a importância ecológica e humana de áreas como a Selva de Matavén, resultado da intensa luta indígena, mas não é estranho que este território e mesmo o governo colombiano não estejam envolvidos na realização de contas, na ponta do lápis, das transações sobre créditos de carbono nessa região? No final da investigação de Andrés Liérvano, o Ministério do Meio Ambiente da Colômbia admitiu que pode haver discrepâncias e que “é evidente que uma área com pouco desenvolvimento rodoviário não pode ser comparada a uma área com elevado risco de desmatamento”. Pois é.

“A coisa confiada” do carbono, seu crédito, tem sido construída na Amazônia sem a participação de universidades públicas e da sociedade civil organizada. Exemplos como o que vem ocorrendo no Marajó, caso do projeto Mapuá, em Breves[15] e dos projetos Redd+ Portel[16] demostram que a “mão invisível” do mercado pode estar tentando se apoderar de territórios[17] por meio de promessas que envolvem dinheiro em meio a um castelo de cartas especulativo que lembram as práticas do rentismo, praga mundial do neoliberalismo para concentração de renda e geração de desigualdades sociais. O rentismo é, de acordo com o economista Ladislau Dowbor, todo processo que extrai valor sem aumentar ou contribuir para a produção. Para Dowbor, quem extrai dinheiro apenas drenando o que outros produzem é um rentista, e o dinheiro extraído é “renta”[18].  No caso, a produção dos povos da floresta para com a sociedade planetária foi a defesa de seus territórios com base na paciência, perseverança e, sobretudo, a resistência de seus habitantes, das mais diversas idades. Como o crédito não fica com elas? Por que não são suas organizações que lideram e gerenciam os créditos de carbono? Como assim os projetos ofertados de Redd+ querem contratos de 30 a 40 anos sem considerar que em 5 anos elas, as comunidades, poderiam ser perfeitamente capazes de gerir os créditos produzidos por sua luta?

Talvez a pergunta maior, a mais incômodas das indagações que reflito sobre a humanidade sobre o confiar, o acreditar, seja: fazemos jus ao crédito dado a nós para garantir às futuras gerações condições dignas de sobrevivência e o respeito à toda vida na Terra?

Um grilo ao mesmo tempo me incomoda se não estamos ferindo essa confiança por ceder ao capital meros “vales-poluição”, enquanto os cavaleiros do capitaloceno[19] seguem seu caminho de destruição do meio ambiente e da própria espécie humana...



Notas:

[1] Texto produzido em ocasião da Audiência Pública sobre o mercado de carbono convocado pelo Núcleo Agrário e Fundiário (NAF) do Ministério Público Estadual, datado para 24 de janeiro de 2023, na sede municipal de Portel. Agradeço à Fernanda Ferreira Senra Antelo pela revisão do texto.

[2] Engenheiro Florestal, Escritor, consultor ecossocial, Mestre em Ciências Florestais pela Universidade Federal Rural da Amazônia, mentor de crédito socioambiental do Instituto Conexsus e aluno do curso de doutorado do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares da Universidade Federal do Pará.

[3] Verificável na página da internet Origem da Palavra - https://origemdapalavra.com.br/palavras/credito/

[4] HOFMEISTER, N.; WENZEL, F; PAPINI, P. BNDES financia frigoríficos que compram de fazendas desmatadas e usam mão de obra escrava. Publicado em Repórter Brasil, em 17 de outubro de 2021. Disponível em https://reporterbrasil.org.br/2021/10/bndes-financia-frigorificos-que-compram-de-fazendas-desmatadas-e-usam-mao-de-obra-escrava/. Acesso: 20/01/2023.

[5] HESSEL, R. Banco da Amazônia tem mais de R$ 33 bi que poderiam ser investidos na bioeconomia. Publicado no Correio Brasiliense em 24/10/2022. Disponível em https://blogs.correiobraziliense.com.br/vicente/banco-da-amazonia-tem-mais-de-r-33-bi-que-poderiam-ser-investidos-na-bioeconomia/. Acesso: 20/01/2023.

[6] BRASIL DE FATO. Em uma década, agronegócio gerou 70% do desmatamento na América Latina. Publicado em 26 de julho de 2016. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2016/07/26/em-uma-decada-agronegocio-gerou-70-do-desmatamento-na-america-latina. Acesso: 20/01/2023.

[7] Desde 2008, a Resolução Bacen no. 3545 condiciona a concessão de crédito rural à comprovação de cumprimento da legislação ambiental. O que está acontecendo, foi suspensa? Os bancos públicos não obedecem a resolução?

[8] RAMOS, C.A.P. Planos de Manejo Florestal Comunitários e Familiares Madeireiros: Diagnóstico Situacional da Tramitação para o Licenciamento. Nota Técnica apresentada ao Instituto Internacional de Educação do Brasil. 2021. Relatório. 38 p.

[9] PARÁ. Instrução Normativa SEMAS Nº 9. Dispõe sobre a criação da Declaração Ambiental e sobre do Relatório Ambiental Anual, como atos autorizativos e instrumentos simplificados de controle das atividades de manejo, extração e produção de palmito e frutos da espécie açaí, realizados em florestas nativas de várzeas por populações agroextrativistas no Estado do Pará, e dá outras providências. 2013. Disponível em https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=263912. Acesso: 21/01/2023.

[10] “... Quantas? Trinta famílias. Sim, tudo moradora desta ilha dos Catitus. Trabalhavam uns na fábrica que tinha de palmito aqui, outros no corte do palmito. Quê? A maioria na derruba de açaí. Eu? Ficava no palmital, cortando, cortando... aonde? No centro, eu mais uns vinte machos. Quando? Sempre Dona, sempre. A gente ficava mesmo era no inverno, que ali rimava com inferno...”. Extraído do Conto Nada mais bonito que uma tarde de verão numa época de inverno - RAMOS, Carlos Augusto Pantoja, 1975. Ato dos Ribeiros. Pantoja Ramos. Belém: Editora Amazônia Bookshelf, 2018. ISBN 978-85-69642-11-4. 224p.

[11] RAMOS, C.A.P. Carta sobre o Metaverso Agrário. Publicado no Recanto das Letras em 30 de julho de 2022. Disponível em https://www.recantodasletras.com.br/e-livros/7571231. Acesso: 22/01/2023.

[12] O Termo CEO vem do inglês que significa Chief Executive Officer, algo como diretor-executivo.

[13] SOURCE MATERIAL, DIE ZEITE e THE GUARDIAN. The Carbon Con. Publicado em 18 de janeiro de 2023. Disponível em https://www.source-material.org/vercompanies-carbon-offsetting-claims-inflated-methodologies-flawed/. Acesso: 21/01/2023. 

[14] LIÉVANO, A.B. Colômbia: ação contra desmatamento pode estar vendendo créditos de carbono “ilusórios”. Agência Pública, publicado em 16/07/2021. Disponível em https://apublica.org/2021/07/colombia-acao-contra-desmatamento-pode-estar-vendendo-creditos-de-carbono-ilusorios/ . Acesso: 15/12/2021.

[15] A Agência Pública revelou que as comunidades das Resex Mapuá questionam a legitimidade do projeto realizado pela Ecomapuá Conservação em cinco imóveis, dos quais quatro incidem parcial ou quase totalmente sobre a área da Resex. Segundo lideranças, as populações extrativistas não têm acesso direto aos recursos provenientes da comercialização dos créditos – nem sequer conhecem os valores –, tampouco possuem poder de decisão sobre os rumos do projeto. As associações representativas dos moradores das Resex Mapuá (Amorema) e Terra Grande-Pracuúba (Amoretgrap) entraram com ação judicial pedindo indenização por danos materiais e morais coletivos contra a Ecomapuá Conservação, a consultoria ambiental Sustainable Carbon, cujo processo tramita na Justiça Federal do Pará - ANJOS, Anna Beatriz. Em Marajó, comunidades questionam venda de créditos de carbono sobre seu território. Agência Pública, publicado em 17 de dezembro de 2021. Disponível em https://apublica.org/2021/12/em-marajo-comunidades-questionam-venda-de-creditos-de-carbono-sobre-seu-territorio/ . Acesso: 22/01/2023.

[16] SABRINA, F. Empresário norte-americano vende discurso ambiental, mas lucra com terras públicas e gera conflitos entre ribeirinhos no Pará. Publicado em 10 de novembro de 2022. The Intercept Brasil. Disponível em https://theintercept.com/2022/11/10/com-discurso-ambiental-empresario-norte-americano-lucra-com-terras-eilude-ribeirinhos-no-para/ . Acesso: 16/12/2022.

[17] O Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM) informou em relatório recente que 714.085 hectares de Portel (principalmente em florestas públicas) já estão sob contratos de créditos de carbono, cobrindo 28% deste município, equivalente a quase 20% da superfície da Suíça (WRM, 2022) - WRM. Neocolonialismo esverdeado na Amazônia: os projetos REDD em Portel. 2022. Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM). Disponível em https://www.wrm.org.uy/pt/publicacoes/neocolonialismo-na-amazonia-projetos-redd-em-portel-brasil .Acesso: 05/01/2023.

[18] DOWBOR, L. Quem produz e quem se apropria: o poder do rentismo. Publicado em 25 de fevereiro de 2021. Diplomatique Brasil. Disponível em https://diplomatique.org.br/quem-produz-e-quem-se-apropria-o-poder-do-rentismo/ . Acesso em 27/12/2022.

[19] Capitaloceno é conceituado como o poder destrutivo que não provém da atividade humana em abstrato, mas de sua organização capitalista / MOORE, JASON W., Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism, Oakland: PM Press, 2016; INSTITUTO HUMANITAS UNISINO. Antropoceno ou Capitaloceno? Publicado em 16 de julho de 2020. Disponível em https://www.ihu.unisinos.br/categorias/601014-antropoceno-ou-capitaloceno. Acesso: 22/01/2023.


*Foto: Lago Branco, Almeirim-PA. Foto: Carlos Ramos, março de 2014.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Quando eu Lembrei do Futuro



Quando eu Lembrei do Futuro


Belém, 31 de dezembro de 2018.


Quando eu lembrei

Tu tinhas um futuro tão bom

Eu escolhia as flores

Que iriam para a tua janela

Florescerás eu sei


A terra seca

A lua nova

A escuridão

Do outro lado

Olha que vem o sol

O silêncio da cor

E como tu eras prisma

Agora o arco-íris

Pensei no arco e a íris


Meu amor fique aqui

Junto comigo

Vejamos os fogos no céu

Os aviões vem nos saudar

Ou nos deixar saudade


Quando eu lembrei

Tu tinhas um futuro doce

Eu escolhia as frutas

Que iriam para a tua mesa

Frutificarás eu sei


A rua deserta

A praça de poucos

O rio desconhecido

A folha que parou


Meu amor fique aqui

Junto comigo

Brotou um olho d´água

Carros vem tomar posse

Ou sentir a nossa sede


Quando eu lembrei

Tu tinhas um futuro calmo

Eu escolhia pra ti a paz

Que iria para o teu teto

Tu sonharás eu sei


O fato nas costas

O vizinho distante

A dor dos outros

A culpa que me chega


Quando eu lembrei

Tu tinhas um futuro amor

Eu escolhia pra ti a nuvem

Que iria para o teu recanto

De mim lembrarás eu sei



Pantoja Ramos.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Sobre a medida provisória que permite a venda de créditos de carbono nas concessões florestais

 


Carlos Augusto Pantoja Ramos.[1]

 

No apagar das luzes de 2022 o Governo Bolsonaro decretou a medida provisória nº 1.151[2], que trata da alteração transitória da Lei nº 11.284, de 2 de março de 2006[3], que dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável de madeira. O propósito da MP é principalmente gerar a possibilidade de acrescentar o direito da comercialização dos chamados créditos de carbono e serviços ambientais no objeto da concessão florestal (artigo 16º, parágrafo 2º da MP nº 1.151).

Originalmente na lei 11.284, o parágrafo 2º apontava que “... no caso de reflorestamento de áreas degradadas ou convertidas para uso alternativo do solo, o direito de comercializar créditos de carbono poderá ser incluído no objeto da concessão, nos termos de regulamento...”. Na redação da nova MP, passa-se a vigorar o texto “... o direito de comercializar créditos de carbono e serviços ambientais poderá ser incluído no objeto da concessão...”. Notem que a indicação de créditos de carbono em sua origem pautava-se no processo de reflorestamento. Vale a pena pesquisar as notas das audiências públicas que discutiram em 2006 a Lei de Gestão de Florestas Públicas. Será que naquela à época o entendimento sobre os créditos de carbono era de funcionarem como prêmio para a ação de recuperar áreas desflorestadas? Fiquei a pensar.

Outra modificação é a inclusão no artigo 16 também como objeto de concessão, parágrafo 4º, “...a exploração de produtos e de serviços florestais não madeireiros, desde que realizados nas respectivas unidades de manejo florestal, nos termos do regulamento da respectiva esfera de Governo, tais como... II - acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado para fins de conservação, de pesquisa, de desenvolvimento e de bioprospecção... VI - produtos obtidos da biodiversidade local da área concedida...". É importante salientar que além do crédito de carbono, a Lei 11.284 vedava o acesso ao patrimônio genético para fins de pesquisa e desenvolvimento, bioprospecção ou constituição de coleções e que seu artigo 17º mencionava que os produtos de uso tradicional e de subsistência para as comunidades locais estavam excluídos do objeto da concessão, com explicitação no edital. Como o assunto principal e motivador da MP editada em dezembro de 2022 é a comercialização de créditos de carbono pelos concessionários da exploração de madeira em florestas públicas, a inclusão também de outros bens florestais no novo texto alarga a possibilidade de uso das florestas públicas, o que traz para mim a preocupação sobre uma tentativa de descaracterização total da Lei 11.284.

Evidentemente falamos da gestão da floresta pública, por isso seu uso precisa ser debatido quanto ao seu alcance. E por se tratar de florestas públicas, o conjunto da sociedade amazônica precisa estar presente para analisar não somente os pontos cruciais desta MP como também de avaliar os resultados da lei de 2006, conquistas, falhas e desafios. Uma marca da Lei 11.284 foi a sua construção em bases participativas. Várias organizações foram chamadas para a elaboração do Projeto de Lei sob a liderança de Tasso Azevedo e participação de lideranças técnicas históricas como Paulo Oliveira Jr., Tarcísio Feitosa, Rubens Gomes, Joci Aguiar dentre outros. Indico como fundamental a participação do Professor Girolamo Treccani na Lei 11.284, com regramento no seu artigo 6º que “... antes da realização das concessões florestais, as florestas públicas ocupadas ou utilizadas por comunidades locais serão identificadas para a destinação, pelos órgãos competentes...”. Desta maneira, o ordenamento territorial passou a ser condicionante das concessões florestais para extração de madeira em florestas públicas tendo como balizador o Plano Anual der Outorga Florestal – PAOF. Minha participação no IDEFLOR anos depois acabou por se concentrar nestes valiosos artigo e plano. E se por um lado, entendemos que é possível disciplinar a atividade florestal madeireira empresarial com arrecadação para os cofres públicos e com adoção de parâmetros mínimos que o manejo preconiza como o ciclo de corte e sobretudo que isso parta de um ordenamento territorial, por outro lado compreendemos que sem equidade e isonomia no acesso aos bens e serviços da floresta, praticamos injustiças como assim descrevo em minha Carta da Isonomia e da Equidade pela Floresta[4].

Com base nas considerações anteriores, teço algumas críticas sobre a medida provisória lançada pelo governo que está findando:

1.     Entendo que há “jabutis”[5] no texto, principalmente ao trazer para o direito das concessionárias, além dos créditos de carbono, a licença para uso de outros bens da floresta e acesso ao patrimônio genético; falamos de uma desconfiguração de uma lei que tem por propósito inicial o ordenamento da atividade madeireira em áreas públicas, gerando arrecadação para estados e municípios e com monitoramento de suas operações em uma conjuntura de inúmeros casos de extração de madeira ilegal na Amazônia;

2.     Uma vez que a sociedade amazônica, sobretudo os povos das florestas avançaram no conhecimento de seus direitos em relação à consulta prévia, livre e informada no âmbito da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho[6] e leis relacionadas no Brasil, entendo ser essencial debater com tais atores a tentativa de inserir outros bens florestais e mesmo os créditos de carbono para benefício a princípio de empresas do ramo florestal madeireiro que estão nas concessões.

3.     É preciso alertar que há casos da licença de passagem de famílias agroextrativistas para coletar determinados bens florestais como no caso extração da balata na Floresta Estadual do Paru por comunidades vizinhas como assim explica Luciana de Carvalho e Marcelo Silva (CARVALHO e SILVA, 2022)[7]. O caminho estava até então decidido: as empresas madeireiras acessariam a madeira e não outros bens florestais que seriam utilizadas por povos da floresta, principalmente quanto ao delicado uso do patrimônio genético envolvido que possui normatização própria;

4.     Sobre a comercialização de créditos de carbono previsto na MP, o texto faz menção à Lei 14.119 que trata da Política Nacional de Pagamento Por Serviços Ambientais[8]; desta forma, conforme previsto no artigo 11 da referida lei, o poder público tem o dever de fomentar a assistência técnica e capacitação para a promoção dos serviços ambientais e para a definição da métrica de valoração, de validação, de monitoramento, de verificação e de certificação dos serviços ambientais, bem como de preservação e publicização das informações. Isso significa que é imperativo que o Estado se faça presente e que a sociedade local debata e cobre por informações sobre o valor que seria pago ao crédito de carbono, o valor que se receberia, como isso seria repartido com a União, Estado e Municípios e quais os tributos deverão ser cobrados.

5.     O artigo 2º da Lei 14.119 estabelece por exemplo que o crédito de carbono seria “... ativo financeiro, ambiental, transferível e representativo de redução ou remoção de uma tonelada de dióxido de carbono equivalente, que tenha sido reconhecido e emitido como crédito no mercado voluntário ou regulado “. Para Fernando Facury Scaff, professor de direito financeiro da USP e tributarista, a incidência sobre a comercialização dos créditos de carbono, que são ativos financeiros, é a do Imposto sobre Operações Financeiras – IOF (SCAFF, 2022)[9]. O tributarista aponta que IOF representa tecnicamente incidência sobre operações (1) de crédito, (2) câmbio, (3) seguro, e (4) relativas a títulos ou valores mobiliários. Ou seja, apesar de ser em sua origem como serviços ambientais, a venda de créditos de carbono é uma operação financeira, onde deve-se cobrar o IOF. Caso contrário, poderemos estar falando do seu não pagamento como evasão de divisas? Como cobrar das concessionárias o IOF de tal modo que isso caracterize que o objeto envolvido é oriundo de uma floresta pública na qual o próprio estado é dono? Concessionárias podem deter tais créditos como se fossem títulos seus e negociá-los em um mundo altamente especulativo como é o do mercado voluntário de carbono?  

6.     A discussão sobre a inclusão ou não da comercialização de créditos de carbono por empresas concessionárias em florestas públicas que originalmente eram para fins de manejo florestal madeireiro deve ser feita com o protagonismo da sociedade amazônica e Estado para a construção das diretrizes e normatização, como foi feito em 2006.

7.     É importante lembrar aos deputados federais que provavelmente terão como pauta em 2023 a regulamentação do mercado de carbono que é imprescindível escutar os povos da floresta, os gestores públicos, os cientistas, os conselhos de florestas estaduais e conselhos de gestão de florestas públicas, os ministérios públicos e as controladorias de orçamento e tributação.

 

Não podemos esquecer que falamos de florestas públicas e não de uma nova fronteira do rentismo[10].







Notas:

[1] Engenheiro Florestal, Mestre em Ciências Florestais, estudante de doutorado do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares (INEAF) da Universidade Federal do Pará, Mentor de Crédito Socioambiental do Instituto Conexsus no Marajó. Atuou como Diretor de Gestão de Florestas Públicas do Instituto de Desenvolvimento Florestal do Pará nos anos 2009 e 2010, durante a implantação das primeiras concessões florestais estaduais.

[2] BRASIL. Medida Provisória 1.151. Altera a Lei nº 11.284, de 2 de março de 2006, que dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável, a Lei nº 11.516, de 28 de agosto de 2007, que dispõe sobre a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - Instituto Chico Mendes, a Lei nº 12.114, de 9 de dezembro de 2009, que cria o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, e dá outras providências. 2022. Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.151-de-26-de-dezembro-de-2022-453738894. Acesso: 27/12/2022.

[3] BRASIL. Lei nº 11.284, de 2 de março de 2006. Dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável; institui, na estrutura do Ministério do Meio Ambiente, o Serviço Florestal Brasileiro - SFB; cria o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal - FNDF; altera as Leis nºs 10.683, de 28 de maio de 2003, 5.868, de 12 de dezembro de 1972, 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, 4.771, de 15 de setembro de 1965, 6.938, de 31 de agosto de 1981, e 6.015, de 31 de dezembro de 1973; e dá outras providências. 2006. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11284.htm . Acesso em 27/12/2022.

[4] RAMOS, C.AP. Carta da Isonomia e da Equidade pela Floresta. Publicado em 16 de novembro de 2021. Recanto das Letras. Disponível em https://www.recantodasletras.com.br/e-livros/7386776. Acesso: 27/12/2022.

[5] Segundo o jornalista Octávio Guedes, “jabuti” é um estratagema que muitos parlamentares fazem ao inserir em uma medida provisória um assunto sem relação com o tema inicial da proposta. Ver em GUEDES, O. Entenda o que é um 'jabuti' na política. Publicado em 18 de junho de 2021. Disponível em https://g1.globo.com/politica/blog/octavio-guedes/post/2021/06/18/entenda-o-que-e-um-jabuti-na-politica.ghtml. Acesso: 27/12/2022.

[7] CARVALHO, L.G. de; SILVA, M.A. da. Os balateiros da Calha Norte: a emergência de um grupo diante das concessões florestais no Pará. In: Antropolítica - Revista Contemporânea de Antropologia. Publicado em 8 de março de 2022. Disponível em https://periodicos.uff.br/antropolitica/article/view/41894/31405. Acesso: 27/12/2022.

[8] BRASIL. Lei 14.119, de 13 de janeiro de 2021. Institui a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais; e altera as Leis n os 8.212, de 24 de julho de 1991, 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, e 6.015, de 31 de dezembro de 1973, para adequá-las à nova política. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14119.htm. Acesso: 27/12/2022.

[9] SCAFF, F. F. A tributação dos créditos de carbono e dos serviços ambientais. Publicado em 17 de fevereiro de 2022. Conjur. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-out-17/justica-tributaria-tributacao-creditos-carbono-servicos-ambientais. Acesso: 07/12/2022.

[10] O rentismo é, de acordo com o economista Ladislau Dowbor, todo processo que extrai valor sem aumentar ou contribuir para a produção. Para Dowbor, quem extrai dinheiro apenas drenando o que outros produzem é um rentista, e o dinheiro extraído é “renta”. Ver em DOWBOR, L. Quem produz e quem se apropria: o poder do rentismo. Publicado em 25 de fevereiro de 2021. Diplomatique Brasil. Disponível em https://diplomatique.org.br/quem-produz-e-quem-se-apropria-o-poder-do-rentismo/. Acesso em 27/12/2022.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Sofá de napa: o fenômeno


Era uma vez um sofá. 

Era um sofá destes de napa que eu nem sei se ainda são fabricados, onde eu sempre me jogava pra assistir televisão, às vezes a TVS (hoje SBT), às vezes a Globo. 

Talvez fosse 1985 ou 1986, não recordo. Só sei que certa vez eu ganhei o raro momento de ficar sozinho em casa à noite. Num lar em que vivam meu pai, minha mãe e meus quatro irmãos, não era algo fácil de acontecer. Ahh, vejam só: iria atacar a latinha de chocolate em pó como bom gatuno de dispensa que fui.

E nesta dita noite fiquei a assistir TV sozinho, ali por volta das 21 horas. O filme? Poltergeist, O Fenômeno, de Steven Spielberg.

E assim que a película iniciou, logo percebi que não era tão boa ideia ficar em casa, solitário, de noite, vendo o desenrolar de uma trama onde espíritos tramavam contra moradores de uma casa, numa bagunça ectoplasma hostil. Muita visagem e muita misura perturbando de tudo quanto era canto aquela família, morada feita onde antes havia um antigo cemitério. Aliás, que raios eram essas construções feitas em cima de lugares sinistros! Era melhor perguntar antes de comprar: "com licença, senhor vendedor, mas esta casa está assentada onde?". Ao que o outro responderia: "nada não, no máximo um assassinato".

E desenrolou-se a história. "Tô sozinho e sou corajoso", pensei.

E no ápice do filme, com os mortos brincando de pira pra cima e pra baixo, eis que venho com minha colher cheia de achocolatado extraviada quando o tudo-de-ruim mete a cara pra fora do guarda-roupa e espanta a todos. Eu, vidrado, me sento no exato instante que o monstro urra!

Sento-me no sofá de napa que faz:

- Fuuuuuuuuuuuuuu...

...

Quando dei por mim, estava no final da primeira quadra da rua 92, e pelo jeito, corri com a colher na mão.  

Quando meus pais e irmãos chegaram, eu estava no banco de fora da casa tossindo. 

- Tudo bem Carlinho?

- Tá sim. Cof! Cof!

- Mas também? pegando friagem. Entra menino!


E assim fui dormir desconfiado do meu guarda-roupa, com as narinas cheias de pó de chocolate.




Pantoja Ramos.


domingo, 18 de dezembro de 2022

Lição Amazônica

 


Originalmente escrito em Belém, 28 de fevereiro de 2020.



Aula de Geografia lá em SP. Professor indaga:

"Alunos, o que é um estuário?".


A mocinha sentada na primeira fila levanta a mão e responde firme:

"Estuário é a embocadura de um rio, sensível aos efeitos das marés, professor".


"Correto! Alguém cite um exemplo de estuário".



A mesma aluna prontamente complementa:

"O Estuário do Rio Amazonas".


"Correto!! Decoraste bem a lição".


Enquanto isso, uma estudante olha pro céu em busca dos pássaros que sempre pousavam no pátio em busca de migalhas de bolacha. Divagava.


O professor percebendo sua falta de atenção, pergunta para tentar tirar-lhe do suposto limbo:


"Você".


"Eu?".


"Sim. Você. Descreva o Estuário do Rio Amazonas".


A estudante dobrou o olhar para a parte esquerda da cabeça, na procura de palavras até expressar:


"Bom, acho que o Estuário do Rio Amazonas é o abraço do maior rio do Mundo na gente para contar da sua alegria em aventurar-se desde lá dos Andes, se despedindo, para assim correr ao Mar que vem a cada seis horas para dizer que está tudo bem com ele".


"Você está muito equivocada, minha cara. De onde tiraste isso! Rá-Rá! Alguém tem uma pergunta pra essa viajante?".


A aluna da primeira fila, pensativa, levantou a mão:


"Você está dizendo que o Rio Amazonas é um ser vivo??!".


"Que nem a gente".


"Isso não tem lógica! Não tem lógica... Não tem... Não tem... Será?".



Primmm!!


Fim da aula.





Pantoja Ramos.

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Crônicas, Passageiro: a Passarela do PAP


Meados dos anos 1990. Eu morava no Conjunto Império Amazônico enquanto fazia a Faculdade de Ciências Agrárias do Pará, hoje Universidade Federal Rural da Amazônia. Estava ali próximo do Colégio Pedro Amazonas Pedroso, uma das melhores escolas públicas à época, o que talvez ainda seja. 

Na parada usual de ônibus do "Império" avistava de longe os estudantes do PAP, na batalha sua em passar no Vestibular, além da dura vida de coletivos e o pior de tudo, atravessar uma avenida Almirante Barroso hostil com seus automóveis Kadets, Unos, Vectras, Monzas, etc. 

E não foi por falta de aviso dos estudantes e outros passantes que uma tragédia ocorreria em uma avenida tão expressa: uma aluna foi atropelada e morta na frente do PAP, gerando forte comoção e revolta dos alunos que fecharam a Alm. Barroso por algumas horas em exigência que fosse construída uma passarela para evitar mais tristes acidentes.

E deste fechamento da principal via de acesso da capital Belém, vieram tropas de choque do governo estadual em resposta aos jovens em protesto, à época sob o mandato "tampão" de Carlos Santos que substituíra seu companheiro de chapa, Jader Barbalho, que renunciou ao cargo de governador para se candidatar a senador. Desproporcionalidade tamanha que media as forças de policiais muito bem armados, com cassetetes e gases de efeito moral e a de alunos secundaristas que no máximo traziam cadernos e cartolinas para bradar que era dever do estado construir uma passarela em segurança para a juventude que só queria estudar.

Porém a segurança e diria mais, a segurança pública agiu a partir de seu esquisito critério de lidar com a população e violentamente foram para cima dos protestos, entrando no PAP com truculência, explosões e muita, muita fumaça. De lá saíram gritos de desespero e medo.

Gritei lá do outro lado da avenida:

- Vocês são loucos??!! São só crianças!!


(respiro).


Sabem. Resolvi escrever essa crônica para lembrar a cada jovem que lutou, protestou e foi atacado pelo Estado naquele dia que sua peleja foi tão memorável em nome da amiga que agora temos sua homenagem construída em forma de passarela e que evita que outros tenham a vida ceifada. Não deixem essa história se apagar.

Quando em novembro de 2022 aqueles alunos do PAP foram intimidados por um beócio bolsonarista (redundância eu sei), eles andavam por cima de uma conquista de direitos, algo que seu intimidador talvez jamais poderia compreender. A luta justa ocorre quando não mais queremos que pessoas morram por descaso ou estupidez.

Aquele caminho erguido em ferro é solo sagrado.