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domingo, 16 de outubro de 2022

Lamberto, o Traumatizado: o ópio nosso de cada dia

Lamberto, o Traumatizado, hoje almoçou na Avenida Bernardo Saião, no tumulto de carros, ônibus, carretos, bicicletas, motos e gente pra lá e pra cá ganhando a vida nos portos e nos navios.

Bateu a fome. Sentou em um restaurante modesto, mesão de madeira para que todos almoçassem juntos, na mobilização de pratos, farinha, água, pimenta e palitos de dente. O PF era bom, bisteca, arroz, feijão e farinha. Lamberto pediu uma tigela de açaí para arrematar.

Enquanto comia, guardou o celular e antenou os ouvidos para as conversas ao lado, de cabeça baixa para não expressar qualquer tipo de julgamento. Chamou sua atenção a reclamação de uma jovem senhora, por volta dos trinta anos de luta, que alto falava para suas interlocutoras, senhoras a comer e ao mesmo tempo manejar as crianças que por ali estavam. Relatou que mataram um jovem hoje de manhã cedo por lá. Segundo a jovem líder, 2 jovens em bicicletas iriam assaltar uma pessoa num carro estacionado, mas assim que aproximaram, do carro saíram homens armados e atiraram em um dos rapazes, que logo morreu, com o outro conseguindo fugir por dentro do canal.

Ela contou que sua região era muito barra pesada por causa dos traficantes e da própria polícia. Sobre esta, disse que há 10 anos, quando estava grávida de seu primeiro filho, um grupo entrou quebrando a porta de sua casa atrás de suspeitos. Que um dos fardados estapeou forte seu rosto, mesmo ela estando gestante de 6 meses. Apesar de dizer que não tinha nada a ver com aquilo tudo, nem ela, nem sua família, por pouco não recebeu novamente um tapa. Disse que passou muito mal com esta violência, temendo complicações na sua condição de esperar um bebê.

Lamberto ficou escutando essas tragédias.

“Tragédias que vão continuar”, pensou.

Deste assunto, aquela mulher pulou para outro de que abrira mão do "seguro da colônia" para não perder seu "bolsa-família". Que em anos passados, teve seu seguro de pescadora desviado de sua conta. Que chorou na Caixa Econômica para que recuperassem seu dinheiro e assim o fizeram. Em outro tema, confirmou para as demais que tudo estava muito caro. Que só não passa fome porque pinta unha, faz chopp, que não tempo pro que é mundano. Que seu marido é barbeiro, que é carregador do porto se preciso for. Uma luta. Imensa luta.

 

Lamberto levantou-se, pagou a conta e ainda escutou da jovem senhora: “por isso que vou votar no 22, pois Lula em 8 anos nunca fez nada e ainda roubou 3 trilhões de reais... Em nome de Jesus!".

 

 

 

Sem traumas (?).

terça-feira, 4 de maio de 2021

Lamberto, O Traumatizado: Poluição

A secretária de meio ambiente daquela cidade pequena recebeu Lamberto, o Traumatizado.

- Boa tarde senhor.

- Boa tarde senhora.

- Em que posso ajudar?

- Eu vim denunciar meu vizinho.

- Qual a denúncia?

- Todo dia ele coloca a caixa de som entre meio-dia e duas da tarde na frente da casa com microfone no máximo do volume, berrando, berrando, berrando. Não deixa ninguém almoçar quieto!

- Entendi, o senhor quer fazer uma reclamação sobre poluição sonora...

- Do Espírito, Poluição do Espírito.

- Hum?

- É sim, porque além da gritaria, ele fala mal de todo mundo pra Deus como se fosse um sujeito perfeito, fala que o coronavírus não existe, ataca a vacina que tá salvando vidas, receita Cloroquina, espalha mentira, grita para as mulheres só viverem para servir os homens, fala de tiro, de morte, da orientação sexual das pessoas, grita "PELA PÁTRIA! PELA PÁTRIA! DEUS ACIMA DE TODOS"...

A secretária fez expressões de solidariedade. Ouviu tudo atentamente e recomendou:

- Desculpe, senhor, Poluição do Espírito não é tratado por aqui.

- Tá bom. Poxa.

- Mais alguma coisa?

- Queria fazer uma queixa sobre poluição sonora...

- Opa! Pode deixar!

A secretária se aprumou com todos seus equipamentos e equipe.

- Já são meio-dia?? Vamos já advertir e quem sabe passar uma multa!




Sem traumas.





sábado, 9 de maio de 2020

Lamberto, o traumatizado: Quando a História faz em ti Cemitério

Lamberto, o traumatizado, comentou a matéria de um sítio de notícias da Bahia:

"Vocês sabiam que o Netinho vai promover uma carreata pró Coronavírus em Salvador amanhã, no dia das mães?".

A neta Maria Aneci indagou:

"Vô, quem é Netinho?".

"Ahhhhhh, que bom, que bom que sua geração já não sabe", disse Lamberto sorrindo.

Maria Aneci deu de ombros e continuou a desenhar.




Sem traumas.







sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Lamberto, o Traumatizado: teu ato Chernobyl

Lamberto, o Traumatizado e seu filho Simone (outro traumatizado) conversavam:

"Você assistiu Chernobyl?"
"Assisti, pai".
"Reparaste que o desastre foi causado por um erro após outro erro, após outra burrada técnica, tudo regado pela arrogância do supervisor e políticos que não queriam mostrar que o Estado estava arcaico e que não admitia ser questionado mesmo se tratando de uma provável tragédia?".
"Reparei. Lembrou-me o Brasil de certa forma".
"Por que?".
"Tava na cara que quem estava para ser eleito ia atiçar 'o fogo' nas pessoas, o fogo na Amazônia, o fogo nos direitos, só que regado à estupidez de sua turma. Era uma tragédia anunciada em forma de voto".
"Então temos que evitar que se atice algo mais grave ainda!".
"O que, pai?"
"Que atice a ideia (que nem Chernobil) que a tragédia matou oficialmente apenas 3 pessoas enquanto cientistas estimam o número de vítimas da radiação entre 4 e 90 mil pessoas ao longo dos anos!".
"Caramba! É mesmo... mutuns, tatus, tamanduás, castanheiras, borboletas, igarapés, o casal que morreu abraçado, negros, mulheres, ativistas, indígenas, pessoas com deficiência, idosos, LGBTs... quantos milhares tem sido mortos por este incendiário?".
"Não sei, filho, é uma radiação que ainda se espalha...".



Sem Trauma?




segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Lamberto, O Traumatizado: "Açaidinha"


Lamberto, o Traumatizado, saía da batedeira de açaí do Seu Ceru trazendo à mão 1 litro na sacola do popular. De repente:

"PERDEU!! PERDEU!!".

O assaltante com a arma na mão gritava: "BORA, RAPÁ, PASSA O OURO!!".

"Que ouro, mano?? Cadê? Nem com relógio eu tô??".

"E NESSA SACOLA??!! NÃO ENGANA MALACO NÃO, RAPÁ!!".

"Aqui?? É só meu açaí.".

"POISÉ, PASSA O OURO! PASSA!!".

"Ouro?".

"OURO PRETO MERMÃO!! QUÉ LEVÁ PIPOCO?!!".

"Poxa, cara, toma, caramba, Chuinf!".

"AÍ OTÁRIO, CHORA MESMO, AQUI É CRIME!".

Lamberto senta na sarjeta. 

"O que é que eu vou fazer... O que vai ser mim hoje... Só tô eu em casa, ia comer esse açaí com ovo...".

O ladrão volta-se pra ele.

"COMEQUIÉ?? TU É ABESTADO?? COMER COM OVO!!".

"É só o que tinha em casa pra comer com açaí, sabecomué, tá difícil as coisas...".

"Nem uma mortadela?".

"Sequer uma banha de charque...".

"Aí, ó, pega essa sacola, abre aí... ABRE AÍ RAPÁ, TÁ SURDO??!".

"Tá bom, tá bom.".

"Metá-Metá".

"Obrigado seu malaco, muito bom de coração o senhor... chuif!".

"CALA-BOCA-MACHO! Vou levar meio litro pra comer com mapará frito lá em casa! Aqui é Ostentação!!".

"Me bate, logo".

"E PEGA O BECO QUE EU VOU PASSAR O SAL!!".

Lamberto levantou-se rapidinho e tratou de obedecer. Quando já estava perto de casa, avistou o mesmo ladrão o seguindo.

"NÃO CORRE!".

Parou gelado.

O ladrão se aproximou com uma poquequinha de plástico com um pó branco dentro.

"Que o senhor quer?? Eu não vou traficar pro senhor, não, não".

"Te acalma, cumpadri, vim te passar o sal. Comer açaí com ovo insosso é a morte!".

"Ah, tá... Valeu...".

"Que o CONSIDERADO te acompanhe".

"Amém.".


Eu ouvi um AMÉM??





Sem Traumas. 





domingo, 10 de março de 2019

Lamberto, o Traumatizado: a prova de que se pode voltar no tempo


Belém, 10 de março de 2019.


Lamberto, o Traumatizado, estava na clínica, aguardando a recuperação de Maria Aneci, que estava acometida de vômito e diarreia. Lamberto passou a manhã ao lado da neta até sua filha Shana (outra traumatizada), chegar para substituí-lo.

"Como ela está?".

"Ela já foi medicada e vai ficar aqui tomando soro. Segundo o doutor, ela já vai melhorar".

"Graças aos céus. Pai, vá pra casa, almoce e depois te mando notícia quando a gente for sair daqui. Só vai lá na recepção pegar o cartão dela que eu acabei esquecendo. Traz pra mim? Ahh, aproveita, vai na cantina que fica no mesmo andar e traz uma coxinha e um suco de laranja pra mim".

"Tá bom. Já volto".

Após pegar o cartão, Lamberto se dirigiu à pequena cantina dentro daquela clínica. Pessoas sentadas, comendo salgados, bolos, doces e tudo o que fosse necessário para enganar a fome naquelas quase 12 horas. Lamberto pediu os salgados quando a televisão jogou sua chamada anunciando o que viria no Jornal Hoje sobre a crise humanitária na Venezuela, enquanto quatro pessoas conversavam alto para as outras ouvirem.

"Tá vendo? Tá vendo?? Tipos desse, aliado do PT, tomam o poder e dá nisso, fome, fome e mais fome! Tem que ir lá tirar ele na marra!".

A única mulher na mesa não concordou. "Ei cara, até parece que tu vive nos anos 1990! Tu não lembras da falsa história das armas de destruição em massa?? Tinha um cara escroto no poder sim lá no Iraque, mas no final das contas, era tudo pra ter o controle do petróleo dos caras. Tu não reparas a coincidência?".

"Tem é que tirar esses corruptos e botar o exército pra tomar conta. Aí sim, tu vai ver ordem em todos esses países daqui da América do Sul!".

A moça valente continuou:

"Tu não lembras dos anos 80? Quanta gente morreu na Nicarágua, Paraguai, Chile por causa desses falsos salvadores da pátria?? E nem te digo da corrupção desses doidos! Tu não ouviste falar das torturas??".

"Que tortura que nada, coisa inventada pela Grande Mídia!".

"E a perseguição nos anos 70?? Tu sabes disso? Tu falas da Grande Mídia contra, mas ela foi quem mais se deu bem com isso aqui no Brasil...".

Um outro da mesa se meteu na conversa já alterado:

"Acho que tu concorda com esse Maduro. Tu deves achar que o Lula não merece ser preso também, né?? Acho que tu é comunista!".

A moça ironizou:

"Pronto! Bateu os anos 60! Ahhhh, estamos cercados de comunistas no Brasil que irão comer as criancinhas, ahhhh a gente já vive num quase socialismo com bancos comendo  metade da nossa grana, ahhhh, meu Deus".

O último que faltava falar, exprimiu voz baixa mas ameaçadora:

"Cuidado ao mencionar Deus, tu pode ser castigada...".

Lamberto com a coxinha e o suco de laranja na mão raciocinou e antecipou a moça, balbuciou palavras ao passar pela mesa: "Inquisição? Século XV? Torquemada??"

Disse o que disse e seguiu adiante.

Antes da porta do elevador fechar, reparou naquelas palavras animalescas babadas e olhares coléricos por três das quatros pessoas daquela mesa em sua direção. Grunhiam como Australopithecus. A moça corajosa sorria e balançava a cabeça para Lamberto. Segundos de cumplicidade.

No crachá dela, de funcionária daquela clínica, estava escrito: Luzia

Aquela que tinha evoluído.




Sem traumas.







domingo, 16 de dezembro de 2018

Lamberto, o Traumarizado: A Culpa não é do Amém

Lamberto, o Traumatizado estava em Macapá. Dia de chuva, deste inverno tão esticado que já emendara com o do outro ano. Frieza e frialdade se aproximando nas terras do Amapá.

No ônibus em que circulava, Lamberto percebeu levantar-se de sua cadeira um homem alto, camiseta de cor camuflada, no qual deu bom dia e perguntava quem amava Jesus.

Todos no coletivo levantaram a mão e seguiram nova indicação do dito homem, que pediu que aplaudissem Jesus.

Clap, Clap, Clap, Clap.


O Homem falou de Deus para os presentes naquele veículo trepidante, falou do pecado, da fé que precisamos ter para a salvação da alma. Lamberto avistava a rua pela janela, concordando no seu íntimo com aquelas palavras, enquanto analisava o lixão amontoado de caroços de açaí misturados às fraldas descartáveis usadas, garrafas pet, copos de plásticos. Crianças davam carambelas e corriam com seus carrinhos de bebê de brinquedo naquele monte de lixo, sobrevoadas por urubus.

Numa linha de raciocínio que mudou de rumo, Lamberto redirecionou sua atenção para as  palavras que se afastavam do contexto da fé, quando o desconhecido homem assim se pronunciou: "Nosso Brasil agora vai para melhor, pois um homem temente a Deus irá comandar a nação. Parabéns aos amapaenses como nós que decidiram em sua maioria pelo nosso capitão. Triste ver que o pessoal do Pará escolher na maioria um cara que tinha tudo pra incentivar a pedofilia!! Nós não! Nós sabemos escolher e proteger a família! Deus acima de todos, Brasil acima de tudo!"

Alguns Clap, Clap, Clap.

"Quem tem fé diga Amém!".

"Amém!", responderam a maioria das pessoas, até meio intimidadas. Mas na ordem expressa pela fé, disseram amém.

"Eu não digo amém disso!", respondeu de sua cadeira, Lamberto.

"Por que não, amado?", o homem tentou ser cortês, mas o subtom de sua voz, como diria Saramago, o traía.

"Porque paraenses e amapaenses são e sempre foram irmãos. E é muito feio jogar irmão contra irmão!".

"Bom, irmão, cada um tem a sua opinião, não é? Vivemos numa democracia, não é?".

"Eu espero que sim, sei lá, tenho dúvidas agora. Amém, irmãos?", Lamberto ironizou, numa pesquisa relâmpago se haveriam distintas opiniões sobre o assunto.

Saiu só um amém, tímido, de um menino, máximo dez anos de idade, roupinhas simples, sandálias gastas, tão leve que conseguia sentar na cuba de chopp que trazia para seu ganha-pão. 

Quando Lamberto puxou a cordinha e se dirigiu para descer, o menino com a cuba de chopp o cutucou.

"Sabes que horas são, tio?"

"São 17 horas".

"Muito agradecido. Moço, faça uma oração daqui a uma hora. Pelos amapaenses e pelos paraenses. Pela paz. Por mim".

"Tá bom". 

Lamberto desceu, viu o ônibus ganhando distância e no janelão de trás estava o menino aplaudindo em sua direção.

Lamberto, por via das dúvidas, agradeceu o menino e sussurrou:


"Amém". 







Sem traumas.









domingo, 7 de outubro de 2018

Lamberto, o Traumatizado: Like a Virgin

Lamberto, o Traumatizado e seu padrinho-quase-pai, Bom Colares,  esperavam o ônibus para retornar para a sua casa. Ambos já tinham votado e como Bom Colares dissera que podia ser a última vez que exercia sua plena cidadania de votar pelo avançar da sua idade septuagenária, pediu a Lamberto que o acompanhasse. Foram às urnas e assim aguardavam o coletivo demorado em aparecer, naquele dia de Domingo às 17 horas. 

No outro lado da rua, uns homens parrudos bebiam na calçada. Levantavam os copos de cerveja e como espartanos gritavam o nome de seu candidato à presidência, para eles um símbolo de masculinidade acima de todos. Como fundo musical daquela bebedeira, reconheceram Lamberto e Bom Colares as baladas dos anos 1970 e 1980. Como não tinham nada pra fazer, brincaram de buscar na memória quem poderia ser a banda ou intérprete.

O maior deles daquela turma, um verdadeiro guarda-roupa de tão grande, esbravejava para toda a vizinhança escutar: "O CAPITÃO VAI ACABAR COM OS VIADOS!! CÊS VÃO VER! BANDO DE BICHINHA!".

Tocou Ritchie. "Menina Veneno, você tem um jeito sereno de ser...".

Lamberto e Bom Colares acharam engraçada a ironia entre o bradar do homem e os versos naquele instante do inglês Ritchie.

"QUERO VER AGORA QUEM MANDA NESSA PORRA!!'". Deu um murro na mesa que espantou até seus colegas. Era um brutamontes.

Virou a música. Tocou George Michael. O homem nesse meio tempo já estava na terceira cerveja. Resolveu arriscar a cantar o refrão, num falsete esquisito, tímido. 

"AI NEVE GONA DANCE THE TICAN, CANTI UÍ GOTI THE HORRÍVER...".


Bom Colares só urubuservando.


"CAPITÃO VAI METRALHAR, VÃO METRALHAR OS COMUNISTAS!".


Nada do ônibus passar. Toca outra música. Banda Erasure. O Guarda-roupa já está com sinais visíveis de embriaguez. Canta alto o refrão.


"AI TATI MINHA ESCOVA!! OUI OUI NÉM PRIS SKID ROM...".


Ensaia uma dança, meio contido. Os demais gritavam também suas palavras de ordem.

"VAI PRA CUBA!".

"ORDEM E PROGRESSO!".

"BRASIL ACIMA DE TODOS!".


Todos bêbados, empolgados simulando tiros no ar.  Pareciam em transe, forçando a goela em suas palavras de ódio. O Guarda-roupa mais uma vez urra:


"VAMO GANHAR E ACABAR COM ESSA SAFADEZA. BANDO DE COMUNISTA, PRETO VAGABUNDO, BICHAS! VIADOS!".


Lá vem o ônibus, finalmente. Pergunto à Bom Colares, o que ele acha daquela visão:

"Desde que o mundo é mundo, quem desdenha quer comprar...".



Toca Madonna. Ela anuncia: 

"Like a Virgin...".

O guarda-roupa não se conteve e completou levantando os braços: 

"EI!!".









Sem Traumas.




domingo, 23 de setembro de 2018

Lamberto, o Traumatizado: Anne Frank a Cada Dia Renasce

Lamberto, o Traumatizado e sua neta Maria Aneci (agora uma pré-adolescente) seguiam no ônibus naquela grande cidade, naquele imenso calor das 3 da tarde, naqueles tempos hidrofóbicos. Trânsito lento, engarrafado, sem mais preferência de congestionamentos em horário de pico. No Brasil, tudo está em momento de pico.

No trânsito de 3 tempos, o motorista do ônibus esperava a licença luminosa para prosseguir. O motor quente não deixava apenas ele estressado, todos ali estavam, no calor vindo de todos os lados. Lamberto reparou o cartaz do candidato a deputado estadual que enquanto vereador desta capital votara contra a implantação de ar-condicionado nos coletivos.  Sorria o candidato daquele papel a ironizar os usuários de coletivos.

De repente, ouve-se forte movimento fora do ônibus de uma moto arrancando em alta velocidade. Seu condutor acabara de fazer uma tentativa de assalto a um carro, frustrada. Assustara-se com uma viatura policial próxima, escondida entre os veículos parados no sinal e afoito, acelerou. A moto tenta cruzar rapidamente o canteiro que divide as pistas de ida e volta, quando é surpreendida por uma kombi que saíra de uma ruazinha para a avenida principal. Com a aceleração alta posta pelo assaltante em sua fuga, tenta desviar bruscamente a moto da Kombi e neste desequilíbrio, choca-se com a parede de uma casa, deixando estirado o motoqueiro, rosto já ensanguentado pela colisão. 

Todos do ônibus viram a cena, estupefactos. E mais estupefactos ficaram ao ver sair do carro que seria o alvo do assalto um homem, bem vestido, que tranquilamente saiu de seu luxuoso carro, atravessou a pista ao encontro do agora semimorto assaltante. Levava algo na mão. Uma arma. Chegou perto do moribundo, que contorcia-se vagarosamente de dor, peito pra cima, no cimento duro daquela tarde e sem cerimônia, disparou 2 tiros na cabeça do caído. Assim fez, assim voltou-se para seu carro, caminhando. O semáforo abriu. Muitos testemunharam e passaram pela cena. Até a viatura passou, indiferente. 

Maria Aneci começa a chorar desesperadamente banco ao lado de Lamberto. Soluçava. "Meu Deus" e botava as mãos no rosto, amparada por seu avô. 

"Chora não, menina", uma voz ecoou dentro do coletivo. A princípio todos ficaram tocados.

"Ele matou aquele homem".

Os rostos mudaram. 

"Tem pena dele não, pequena, eles não tem pena da gente", falou uma senhora que sentava próxima de Aneci. A terça parte dos passageiros concordaram com ela. 

"Mas como assim? Um estava caído se contorcendo e o outro veio e atirou!", insistiu a menina. 

"Tu não sabe de nada menina, tem é que matar mesmo! Eu faria a mesma coisa!".  A terça parte aplaudiu o homenzarrão que gritou da parte de trás do ônibus.

"Mas não é certo matar!".

"O que tu sabe hein moleca??? Sabe de nada, inocente".

Gargalhadas.

Dois terços do ônibus ficaram calados, não sabiam o que dizer. Uma moça resolveu opinar: "a gente chegou nesse ponto? Pai do Céu? Onde vamos parar? Tudo se resolvendo na bala?? A gente não é bicho!".

"Cala a tua boca aí, tu também não sabe de nada!".

Maria Aneci em prantos tentou pela última vez argumentar: "que mundo é este com morte e todo mundo aplaudindo a morte? Vô Lamberto, isso era assim no seu tempo?".

Lamberto não tinha o tempo dele. Eram simplesmente os tempos.

A moça que concordava com Maria Aneci começou a ser hostilizada. Lamberto falou baixinho para que ela descesse junto com ele e a neta.

Puxaram a cordinha para a próxima parada. 

Antes de descer do coletivo, conduzindo com todo cuidado Maria Aneci e a moça esclarecida em direção à porta aberta, Lamberto sentenciou para aqueles passageiros em alto e bom som:

"Agora sei porque soltaram Barrabás!".

Desceram em meio a xingamentos.


O ônibus partiu. Logo adiante entrou num túnel... bastante escuro.







Sem Traumas.