Belém, 25 de fevereiro de 2012.
Cobra Norato é uma das mais conhecidas lendas do folclore amazônico. Conta a lenda que em numa tribo indígena da Amazônia, uma índia, grávida da Boiúna (Cobra-grande, Sucuri), deu à luz a duas crianças gêmeas que na verdade eram Cobras. Um menino, que recebeu o nome de Honorato ou Norato, e uma menina, chamada de Maria Caninana.
Lá no rio eles, como Cobras, se criaram. Honorato era bom, mas sua irmã era muito malvada, um demônio, afogando banhistas, fazendo naufragar embarcações, assombrando viajantes, atacando os animais.
E foi uma dessas Cobras Grandes reencarnando Maria Caninana que provavelmente atacou Seu Armando, lá no médio rio Timbuí, na divisa entre Gurupá e Melgaço, no Marajó, naqueles tempos de pouca gente nos rios, onde a televisão ainda despontava pelo Pará e Brasil afora.
O rio Timbuí é afluente direto do Amazonas, fugindo sinuoso da maresia braba do Grande Rio até os campos, já em terras de Melgaço. Os mururés tomam conta do rio em época do inverno, que ao se somarem à neblina das madrugadas, lança a região algumas vezes ao ano de maneira solitária e misteriosa.
Armando era marreteiro. Vivia de tempos em tempos buscando mercadorias para dentro do rio Timbuí, comprando barato na sede de Gurupá e vendendo caro aos ribeirinhos. No seu batelão, carregava as dívidas de vários compadres, que largavam às vezes toda a sua produção para quitarem as dívidas com ele. Armando estava se tornando patrão e sabia disso.
Na certeza de que cresceria ainda mais na arte do comércio e do aviamento, Armando decidiu fazer viagem das longas. Sua intenção era chegar até Macapá e adquirir barco a vapor, possante forma de ganhar ainda mais dinheiro, reforçando a idéia de que quanto mais veloz o marreteiro se move, maior é a sua influência. E assim partiu.
Três anos depois, Armando voltara. Conseguindo seu intento, assustou a todos com a geringonça que cortava o Timbuí, bem rápido e mais ganancioso a distribuir novidades de roupas, de cigarros, bebidas, remédios, recolhendo dinheiro ou palmito, ou frutos de açaí, ou porcos, ou galinhas. Tudo valia, desequilibrado sempre ao seu favor os valores de troca. Seu maior poder era o fato de agora estar mais bem informado das coisas do mundo, talvez a melhor moeda do marreteiro.
Com o retorno, alguns moradores do Timbuí ficaram contrariados com o aumento da falta de justiça nos negócios de Armando. Mais do que isso, incitava o descontentamento de atravessadores menores que também andavam no rio, já contados que o primeiro tinha ido embora para sempre, cujo seu barracão já estava objeto de negociatas dos novos comerciantes.
E numa dessas saídas de Gurupá para nova prática de marretagem, caiu viagem adentro na noite das mais escuras do ano, sem luar, sem vento, céu encoberto, de Amazonas liso e silêncio que incomodava Armando quando o barco parava. Preferia logo que o motor trabalhasse. Enquanto parado, cantarolava para espantar o medo:
- Chicuã que voa sozinho / vai cantando em longo assovio / e a vida vai esvaindo / do compadre amigo vizinho...
No rio Timbuí, a luz do candeeiro a querosene tentava iluminar um rio que esfumaçava em nevoeiro, de poucos sapos coaxando e grilos aqui e ali conversando. De vez em quando parava para tirar os mururés da palheta que impediam o barco de curvar as várias dobradas que havia. Conseguiu neste vai-pára-recolhe-vai chegar de madrugada no médio rio.
Na capela da comunidade, foi recebido pela Velha Joca, idosa que tinha encomendado tabaco dos melhores a Armando e pagaria com alguns patos gordos que criava. Enquanto embarcavam os patos, Dona Joca comentou:
- Seu Armando, melhor era que o senhor ficasse por aqui pra passar o resto da noite. O tempo tá feio.
- Não dá senhora. Ainda tenho que chegar lá no alto pra cobrar o velho Totonho. Tá me devendo a criatura faz duas viagens.
- O que se pode fazer amanhã pode adiá o de hoje, né? E olha, sumiu duas crianças só duma vez lá na ponte do Sabá Sarapó. Tão dizendo que é coisa de cobra grande...
- Mas quando, Dona Joca, é afogamento. Só isso.
- Só sei que depois que veio morar uma mulher lá no alto sem marido, sem filho e bonita como só o senhor vendo, não me espanto se é Maria Caninana.
- Maria Caninana?
- É meu filho. É filha de Cobra Grande que vira Cobra Grande e apronta com as pessoas só por maldade.
- Hum-hum.
- Só sei que depois que ela chegou, duas criança sumiu, vi canoa revirada aqui no trapiche sem ter maresia. Seu Neco lá do Baixo disse que viu a água soprá outra noite.
- E eu só sei que tempo é dinheiro, senhora. E eu já to perdendo o meu nessa conversa. Licença – e se foi.
Desamarrando a corda da defesa da ponte, repete o cantarolar:
- Chicuã que voa sozinho / vai cantando em longo assovio / e a vida vai esvaindo / do compadre amigo vizinho...
Dona Joca, ao se afastar, acende o cachimbo e joga recado:
- Deixa de cantar besteira, homi. Não mete chicuã no meio. É ave de agouro.
- Conversa – resmunga o marreteiro partindo.
Na luta por prosseguir no rio tomado de plantas, tenta curvar para enfrentar aquilo que chama de Alto Timbuí. O breu conseguiu ficar mais escuro ainda, com nada de casas a quilômetros de distância e nenhum um sinal de lamparina. O leme travou. Cambava só pra esquerda e se não é pela habilidade do comandante, acabaria mergulhando no aturiá.
- Bando de mururé sacana!
Armando pela quarta vez naquela viagem pulou na água escura do Timbuí para limpar o fundo da embarcação. Mergulhou e retirou uns dois quilos de plantas só na primeira leva de limpeza. Enquanto empurrava o mato, percebeu o movimento da água maior do que a que seu braço fazia. Dois plás a proa do barco escutou. Cantando desconfiado, deu uma olhada pelo beiço direito e não vira o que causou o barulho.
- Chicuã que voa por cima / já deixou citado a sina / e se foi a linda menina / o meu choro é a chuva fina...
No falar do repetido refrão, algo por baixo dele o levanta até a cintura sair da água, num pulo de matar coração cerca de três metros pra frente. Sem saber o que cavalgara, voltou as braçadas para o barco em metros que pareciam enormes distâncias. Quando tentava subir, uma maresia forte quase o jogou novamente no rio, fazendo-o aterrissar por sobre as panelas de sua pequena cozinha. Na medida em que correu por dentro de seu transporte, a maresia ia e vinha renovada por força que não era vento. E escutou forte assopro como se uma cachoeira fizesse caminho contrário entre o céu e a terra no meio do rio.
Na ânsia de ligar o motor, escorregou a mão, batendo-a no assoalho do barco e pressionada pelo resto do corpo assustado. Mas nem sentiu a dor direito, quando duas luzes como dois holofotes dos mais robustos navios e um grito rouco iluminaram o ambiente. Deu pra ver os dentes, sentir o odor pitiú e o pequeno barquinho tombando, tombando...
Equilibrando-se no torto que estava, ouvindo um estralo enorme da madeira do pô-pô-pô, num rastilho de coragem tirou o facão da cintura molhado da limpeza, saltitou e jogou-a na direção de um dos grandes olhos iluminados, ferindo-o, chacoalhando ainda mais a situação dos pés. Isso o permitiu rapidamente desatar a corda que prendia a canoazinha que trazia sempre para as ocasiões em que visitavam comunidades e suas praias. Agiu de tal forma que quase se alagou. E remou como nunca tinha o feito antes para longe daquela confusão de fedor e medo. Ofegante, chegou até a terra, atravessando a mata como um desvairado até tropeçar e cair escondido pelo mututizeiro de largas raízes.
Algumas horas depois, sua respiração voltou ao normal. Pensando no que acontecera, tentava achar uma resposta que não havia. Enquanto esperava pela chegada da conclusão e do raiar do sol, brincando de enterrar o remo no chão meteu-se em canção:
- Cabocla linda Maria é / Cabocla feita pra me servir / Maria filha do seu Tomé...
E um grande olho ergueu-se de dentro do igarapé que seguia de frente a Armando.
Lampejo de mordida!
Os sapos voltaram a coaxar. Os grilos a cantar. Uma guariba cantou.
De manhã a moça do Alto Timbuí desconhecida passeava com o ventre cheio, remando preguiçosa...
Pantoja Ramos
Enviado por Pantoja Ramos em 02/03/2012
Reeditado em 08/03/2012
Reeditado em 08/03/2012
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