quinta-feira, 20 de julho de 2017

A Linha da Cobiça






O Menino e o Mundo - Filme de Alê Abreu

(como eu me sinto)



Carlos Augusto Ramos[1]


Caríssim@s Dilva, Mariana, Mário e Luiz,

Na proporção direta do sofrimento de quem está Abaixo da Linha da Pobreza, é a responsabilidade de quem está Acima da Linha da Cobiça.

A Linha da Cobiça.

Tal termo pesquei no Livro Descolonizar o Imaginário[2], que coincidentemente conheci em meio a três episódios recentes que podem muito bem explicar (infelizmente) o outro lado da gangorra mundial e a tentativa de muitas pessoas em ultrapassar inconscientemente esta linha, a da Cobiça.

Na primeira análise de três partes aqui apresentadas, descrevo o Projeto de Lei 107, de autoria do deputado estadual Hildegardo Nunes, que dispõe reconhecer a pecuária no Marajó como única atividade tradicional, a despeito (mesmo!) das atividades extrativistas como a coleta de açaí, a pesca artesanal, a extração do óleo de andiroba e dos plantios de mandioca para a produção de farinha, colocadas à escanteio como “complementares” pelo texto. Em tramitação na Assembleia Legislativa do Pará, o PL 107 traz por um lado, o simbólico de que o gado e seu fazendeiro são mais importantes do que a população centenária e quiçá milenar na qual nos é origem; por outro, a necessidade de ao reagir, façamos uma avaliação crítica de um termo que nos foi imposto, de extrativistas.

Nosso país (apontável no mapa mundi, mas que ultimamente tem escancarado como somos frágeis enquanto Nação) possui uma longa tradição de uso comum da terra, numa misturada de povos nativos, afrodescendentes e migrantes europeus. Porém, pouco recebera ao longo dos séculos o reconhecimento à altura que merece do poder político e econômico hegemônicos que pudessem bem aproveitar esta rica soma entre diversidade cultural e natureza generosa, bem diria o eterno Jean Pierre Leroy[3]. O sentimento individualista e a vontade de estar Acima da Linha da Cobiça de quem detém o capital e os meios de comunicação[4] preferiram influenciar a conquista de direitos dos povos nativos como a Marajoara, dificultando-lhes o acesso à políticas públicas como saúde, trabalho e educação – a inclusão ao restante do país, porém, exigindo que tais povos fizessem parte do sistema extrativista-capitalista, forçando-os a também serem considerados como extrativistas. Hoje me pergunto se o são. E nesta brincadeira sádica de incluir nos planejamentos estratégicos governamentais quem vive da terra conforme conveniência, seguimos mantendo o que o economista equatoriano Alberto Acosta analisa: que a pobreza em muitos países do mundo está relacionada com a existência de uma significativa riqueza em recursos naturais. Os países ricos em recursos naturais, cujas economias são sustentadas prioritariamente em sua extração e exportação, encontram maiores dificuldades para se desenvolver[5].

Por tal, o extrativismo nos é uma maldição, não criada enquanto conceito pelos nativos, mas sempre lembrada conforme o bel prazer de mandatários não nativos. Quando não, entende-se como função complementar de uma região como o Marajó, segundo a PL 107. Nem mais, nem menos. Por isso, o texto já submetido à ALEPA já nasce errado, uma vez que extrativismo não seria o melhor termo para nos explicar. Deve-se pensar em algo que realmente nos explique, ou na falta de um termo abrangente, que cada Bem Comum como explica Jean Pierre Leroy ou Bem e Serviço Florestal, que exercitei para aquilo que a floresta provém, faça este trabalho[6]. Desta forma, sugere-se que as atividades realmente tradicionais são os Bens Comuns que nos alimentaram, geraram renda e nos abrigaram. Ou seja, a coleta de açaí, a pesca artesanal, a extração do óleo de andiroba, as cordas feitas das enviras das árvores, as palhas de bussu são verdadeiramente atividades tradicionais, não relegáveis a um segundo plano. A indicação de ser a pecuária a única atividade consagrada no Marajó pelo Estado Paraense seria uma atitude Acima da Linha da Cobiça, uma espécie de grilagem, só que no campo das ideias. Como se não bastasse seu triste histórico de apoio a quem desmata e gera conflitos agrários[7].

Sementes de Andiroba. Foto: FASE



No segundo caso que decidi discorrer para caracterizar a Linha da Cobiça, volto-me para a mineração. Uma atividade econômica danosa à natureza, sempre danosa. Por isso, quando leio que aqui e acolá fazem Estudos de Impacto Ambiental da Mineração, eis que percebo a essência do eufemismo[8], um dos anestesiantes da reflexão sobre o que está em jogo. Não é mero impacto, é DANO!

O que dizer do COLTAN (columbita-tantalita) cujas minas do Congo mostram toda a maldade e frieza dos ricos acima da Linha da Cobiça? Sem questionar as marcas de celulares que você e eu utilizamos, seguimos para subir esta linha alienados, enquanto desumanamente paga-se aos mineiros (homens, mulheres) U$2,50 por quilo garimpado e às crianças U$0,25 por dia trabalhado nos buracos escavados, na tenra idade seus 7 anos[9]. Detalhe: um quilo vale no mercado U$500,00. Por isso, cada celular comprado por um capricho confirma o sentimento de consumismo e influencia diretamente na vida dos congoleses. Pobre Mãe África! Sendo berço da Humanidade, tantos flagelos movidos pelo egoísmo de diversas pedras e metais.

Presenciei uma situação curiosa outro dia, em Almeirim, mais especificamente no meio rural do Distrito de Monte Dourado. Um senhor muito apressado surgiu na comunidade em que eu estava para fazer uma pesquisa mineral. Quando uma das dirigentes da comunidade perguntou se era possível antes fazer uma reunião com as lideranças, ele insistiu: estava com pressa e disse ser do Governo Federal (de fato estava ali uma Pick-up com adesivo de ORDEM E PROGRESSO), do Departamento Nacional de Produção Mineral. Perguntei se algum ofício foi enviado àquela associação comunitária anteriormente e expliquei que os moradores locais tinham Plano de Uso dos Castanhais. O senhor já bem chateado sentenciou que não haveria recursos financeiros federais para a localidade se a pesquisa não fosse feita. E foi embora. Devia estar num mal dia. Imagina estar longe da sua casa procurando bauxita em seu trabalho para manter sua família. Sinto pesar que as pessoas sejam tão engolidas pelos processos que não consideram os efeitos de projetos que viram de ponta-cabeça em pouco tempo a vida de quem só queria sossego. O senhor da Pick-up ORDEM E PROGRESSO é pobre, eu sou pobre, provavelmente tu que me lês idem. Rico é somente os pontos extremos de um arco mundial que coloca o super-rico material que não precisa trabalhar pois possui tanto dinheiro que os outros que se virem por ele. Na outra ponta, o rico da natureza, mantido pela Mãe Terra genuinamente como nossos povos nativos. Fora destes pontos, somos todos pobres para procurar sustento, em base de dinheiro que seja para comprar uma lata de sardinha, pois do contrário, passas fome. Para onde vais neste pêndulo? O que escolhes? Eis a crise de nossa existência.




Na terceira e última revista que faço enquanto a figura simpática e enigmática do “Menino e o Mundo” me passa na vista[10], lembro do Orçamento Geral da União em 2017, que indigna hoje e pelos próximos 20 anos com a aprovação da Emenda Constitucional 95, que limita por tal período os gastos públicos. Naquele dia, o Pacto de Nação foi estremecido, pois condena brasileirinhos e brasileirinhas nascid@s naquele dia como sujeit@s desde já à contenção de despesas. Uma Ode para os Acima da Linha Cobiça recitaram os legisladores que aprovaram esta emenda. Nobres congressistas que se mantém às custas dos milhões de brasileiros na outra linha. As mortes por precariedade de atendimento de cada habitante deste país não-sei-se-nação causadas por esta lei que protege os bancos privados lhes serão creditados. Faço questão de divulgar por aí. As listas de votação já foram baixadas por mim[11].






Segundo José de Souza Silva, que provoca a necessidade da uma nova institucionalidade para as relações humanas[12], é preciso refletir-agir na seguinte pergunta: Mudar as coisas ou mudar as pessoas que mudam as coisas? Para o estudioso da EMBRAPA, a inovação institucional pode transformar as formas de interpretação da realidade, criticamente, precedendo a tecnologia instrumental. É preciso sair fora da caixinha colocada há 500 anos pelos pensadores do mercantilismo que enriqueceram a Europa e os EUA a partir da “sangria” dos recursos naturais da América Latina, África e Ásia.


Um dos efeitos mais perversos desta histórica servidão é o estabelecimento do sentimento de que o local, o território, a vida no município, não tem voz nem capacidade de confrontar o sistema. Para José Silva, as instituições de governo, da iniciativa privada e da sociedade civil precisam realinhar suas ações entendendo que “nada é superior à vida”; que todo ser humano busca formas distintas de saber o sentido de sua existência; que a dicotomia superior x inferior, hemisfério norte x sul e desenvolvido x subdesenvolvido são invenções político-ideológicos de dominação. E o que é mais afiado de se perceber: o desenvolvimento sustentável não é conceito e sim uma promessa não cumprida!  

Em relação ao desenvolvimento sustentável, acho que cada morador ou território bem poderia definir o que quer na sua passagem pela terra, sujeitos vivos que são, não arrastáveis como zumbis de seriados. Com certeza saberão explicar o que não querem.


Então assim, sonho: quem dera se os moradores do menor IDH do Brasil, Melgaço; o menor PIB per capita brasileiro, Curralinho e o local de maior incidência histórica de malária, Anajás, se juntassem para uma ação coletiva contra a EC 95, com desdobramentos na dívida pública brasileira. Utilizar dos meios jurídicos para questionar as últimas leis nocivas ao nosso Bem-Estar Social seria uma tentativa interessante, formalizando que esta geração resolve gritar “Não!” aos vinte anos de sufocamento de inocentes. “Estão nos matando aos poucos...”, disse-me um amigo outro dia.


Então movimentemo-nos. Sejamos resultado e ferramenta de uma nova era da Humanidade.


Método? Ter a mente e o coração abaixos da Linha da Cobiça é já um bom começo.



Breves e Portel, 12 de julho de 2017.








[1] Engenheiro Florestal, consultor socioambiental.
[2] Descolonizar o Imaginário: Debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento – organizado pelo do Grupo Permanente de Trabalho sobre Alternativas ao Desenvolvimento apoiado pela Fundação Rosa Luxemburgo.
[3] Mestre que escreveu o livro Mercado ou Bens Comuns? O Papel dos Povos Indígenas, Comunidades Tradicionais e Setores do Campesinato Diante da Crise Ambiental/ Jean Pierre Leroy (autor); Maiana Maia e Julliana Malerba (organizadoras). Rio de Janeiro: FASE – Federação de Órgãos Para Assistência Social e Educacional, 2016, 44p.
[4] Atualmente 0,9% da população brasileira detém 60% da riqueza financeira no Brasil - http://www.viomundo.com.br/denuncias/brasil-debate-absurda-concentracao-de-renda-09-dos-brasileiros-detem-60-da-riqueza.html .
[5] Alberto Acosta descreve o extrativismo como “uma modalidade de acumulação que começou a ser forjada em grande escala há quinhentos anos” e que “esteve determinada pelas demandas das metrópoles – os centros do capitalismo nascente”.
[6] Verificar em Bens e Serviços da Floresta: Ensaio-Prosahttp://www.recantodasletras.com.br/e-livros/5624741.
[7] No anuário da Comissão Pastoral da Terra, Conflitos no Campo Brasil 2016, o Estado do Pará foi aquele que apresentou maior número de famílias envolvidas em conflitos por terra (18.419 famílias). A morte dos 10 trabalhadores rurais em Pau D´Arco, em 2017, com tortura e fuzilamento denota um Estado doente do ponto de vista psicológico, pois jura de pé junto atuar ao público em geral, porém é privatizado - http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-07/chacina-de-pau-darco-no-para-nao-pode-ficar-impune-dizem-ativistas  .
[9] Recomendo ouvir o Programa Radiofônico Laudato Si, episódio 15 - http://redamazonica.org/pt-br/laudato-cuidado-nossa-casa-comum/ .
[10] Recomendo assistir este instigante e belíssimo desenho animado - https://www.youtube.com/watch?v=_N5KGcBDe_M
[12] José de Souza Silva – La Innovación institucional decolonial y el´dia depués del dessarrollo, capítulo 4° do livro Siembras del buen vivir: entre utopias e dilemas possibles.







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