Carlos
Augusto Ramos[1]
Caríssim@s
Dilva, Mariana, Mário e Luiz,
Na proporção direta do sofrimento de quem está Abaixo da Linha da Pobreza, é a
responsabilidade de quem está Acima da
Linha da Cobiça.
A Linha da Cobiça.
Tal termo pesquei no Livro Descolonizar
o Imaginário[2],
que coincidentemente conheci em meio a três episódios recentes que podem muito
bem explicar (infelizmente) o outro lado da gangorra mundial e a tentativa de
muitas pessoas em ultrapassar inconscientemente esta linha, a da Cobiça.
Na primeira análise de três partes aqui apresentadas, descrevo o
Projeto de Lei 107, de autoria do deputado estadual Hildegardo Nunes, que
dispõe reconhecer a pecuária no Marajó como única atividade tradicional, a
despeito (mesmo!) das atividades extrativistas como a coleta de açaí, a pesca
artesanal, a extração do óleo de andiroba e dos plantios de mandioca para a
produção de farinha, colocadas à escanteio como “complementares” pelo texto. Em
tramitação na Assembleia Legislativa do Pará, o PL 107 traz por um lado, o
simbólico de que o gado e seu fazendeiro são mais importantes do que a
população centenária e quiçá milenar na qual nos é origem; por outro, a
necessidade de ao reagir, façamos uma avaliação crítica de um termo que nos foi
imposto, de extrativistas.
Nosso país (apontável no mapa
mundi, mas que ultimamente tem escancarado como somos frágeis enquanto
Nação) possui uma longa tradição de uso comum da terra, numa misturada de povos
nativos, afrodescendentes e migrantes europeus. Porém, pouco recebera ao longo
dos séculos o reconhecimento à altura que merece do poder político e econômico
hegemônicos que pudessem bem aproveitar esta rica soma entre diversidade
cultural e natureza generosa, bem diria o eterno Jean Pierre Leroy[3]. O sentimento
individualista e a vontade de estar Acima
da Linha da Cobiça de quem detém o capital e os meios de comunicação[4]
preferiram influenciar a conquista de direitos dos povos nativos como a
Marajoara, dificultando-lhes o acesso à políticas públicas como saúde, trabalho
e educação – a inclusão ao restante do país, porém, exigindo que tais povos
fizessem parte do sistema extrativista-capitalista, forçando-os a também serem
considerados como extrativistas. Hoje me pergunto se o são. E nesta brincadeira
sádica de incluir nos planejamentos estratégicos governamentais quem vive da
terra conforme conveniência, seguimos mantendo o que o economista equatoriano
Alberto Acosta analisa: que a pobreza em muitos países do mundo está
relacionada com a existência de uma significativa riqueza em recursos naturais.
Os países ricos em recursos naturais, cujas economias são sustentadas
prioritariamente em sua extração e exportação, encontram maiores dificuldades para
se desenvolver[5].
Por tal, o extrativismo nos é uma maldição, não criada enquanto
conceito pelos nativos, mas sempre lembrada conforme o bel prazer de
mandatários não nativos. Quando não, entende-se como função complementar de uma
região como o Marajó, segundo a PL 107. Nem mais, nem menos. Por isso, o texto
já submetido à ALEPA já nasce errado, uma vez que extrativismo não seria o
melhor termo para nos explicar. Deve-se pensar em algo que realmente nos
explique, ou na falta de um termo abrangente, que cada Bem Comum como explica Jean Pierre Leroy ou Bem e Serviço Florestal, que exercitei para aquilo que a floresta
provém, faça este trabalho[6]. Desta
forma, sugere-se que as atividades
realmente tradicionais são os Bens Comuns que nos alimentaram, geraram renda e
nos abrigaram. Ou seja, a coleta de açaí, a pesca artesanal, a extração do
óleo de andiroba, as cordas feitas das enviras das árvores, as palhas de bussu
são verdadeiramente atividades tradicionais, não relegáveis a um segundo plano.
A indicação de ser a pecuária a única atividade consagrada no Marajó pelo
Estado Paraense seria uma atitude Acima da Linha da Cobiça, uma espécie de
grilagem, só que no campo das ideias. Como se não bastasse seu triste histórico
de apoio a quem desmata e gera conflitos agrários[7].
Sementes de Andiroba. Foto: FASE
No segundo caso que decidi discorrer para caracterizar a Linha
da Cobiça, volto-me para a mineração. Uma atividade econômica danosa à
natureza, sempre danosa. Por isso, quando leio que aqui e acolá fazem Estudos
de Impacto Ambiental da Mineração, eis que percebo a essência do eufemismo[8], um dos
anestesiantes da reflexão sobre o que está em jogo. Não é mero impacto, é DANO!
O que dizer do COLTAN (columbita-tantalita) cujas minas do Congo
mostram toda a maldade e frieza dos ricos acima da Linha da Cobiça? Sem
questionar as marcas de celulares que você e eu utilizamos, seguimos para subir
esta linha alienados, enquanto desumanamente paga-se aos mineiros (homens,
mulheres) U$2,50 por quilo garimpado e às crianças U$0,25 por dia trabalhado
nos buracos escavados, na tenra idade seus 7 anos[9].
Detalhe: um quilo vale no mercado U$500,00. Por isso, cada celular comprado por
um capricho confirma o sentimento de consumismo e influencia diretamente na
vida dos congoleses. Pobre Mãe África! Sendo berço da Humanidade, tantos
flagelos movidos pelo egoísmo de diversas pedras e metais.
Presenciei uma situação curiosa outro dia, em Almeirim, mais
especificamente no meio rural do Distrito de Monte Dourado. Um senhor muito
apressado surgiu na comunidade em que eu estava para fazer uma pesquisa
mineral. Quando uma das dirigentes da comunidade perguntou se era possível
antes fazer uma reunião com as lideranças, ele insistiu: estava com pressa e
disse ser do Governo Federal (de fato estava ali uma Pick-up com adesivo de
ORDEM E PROGRESSO), do Departamento Nacional de Produção Mineral. Perguntei se
algum ofício foi enviado àquela associação comunitária anteriormente e
expliquei que os moradores locais tinham Plano de Uso dos Castanhais. O senhor
já bem chateado sentenciou que não haveria recursos financeiros federais para a
localidade se a pesquisa não fosse feita. E foi embora. Devia estar num mal dia.
Imagina estar longe da sua casa procurando bauxita em seu trabalho para manter
sua família. Sinto pesar que as pessoas sejam tão engolidas pelos processos que
não consideram os efeitos de projetos que viram de ponta-cabeça em pouco tempo a
vida de quem só queria sossego. O senhor da Pick-up ORDEM E PROGRESSO é pobre, eu sou pobre, provavelmente tu que me
lês idem. Rico é somente os pontos extremos de um arco mundial que coloca o
super-rico material que não precisa trabalhar pois possui tanto dinheiro que os
outros que se virem por ele. Na outra ponta, o rico da natureza, mantido pela
Mãe Terra genuinamente como nossos povos nativos. Fora destes pontos, somos
todos pobres para procurar sustento, em base de dinheiro que seja para comprar
uma lata de sardinha, pois do contrário, passas fome. Para onde vais neste
pêndulo? O que escolhes? Eis a crise de nossa existência.
Na terceira e última revista que faço enquanto a figura
simpática e enigmática do “Menino e o Mundo” me passa na vista[10], lembro
do Orçamento Geral da União em 2017, que indigna hoje e pelos próximos 20 anos
com a aprovação da Emenda Constitucional
95, que limita por tal período os gastos públicos. Naquele dia, o Pacto de
Nação foi estremecido, pois condena brasileirinhos e brasileirinhas nascid@s
naquele dia como sujeit@s desde já à contenção de despesas. Uma Ode para os Acima da Linha Cobiça recitaram os
legisladores que aprovaram esta emenda. Nobres congressistas que se mantém às
custas dos milhões de brasileiros na outra linha. As mortes por precariedade de
atendimento de cada habitante deste país não-sei-se-nação causadas por esta lei
que protege os bancos privados lhes serão creditados. Faço questão de divulgar
por aí. As listas de votação já foram baixadas por mim[11].
Segundo José de Souza Silva, que provoca a necessidade da uma
nova institucionalidade para as relações humanas[12], é
preciso refletir-agir na seguinte pergunta: Mudar as coisas ou mudar as pessoas
que mudam as coisas? Para o estudioso da EMBRAPA, a inovação institucional pode
transformar as formas de interpretação da realidade, criticamente, precedendo a
tecnologia instrumental. É preciso sair fora da caixinha colocada há 500 anos pelos
pensadores do mercantilismo que enriqueceram a Europa e os EUA a partir da “sangria”
dos recursos naturais da América Latina, África e Ásia.
Um dos efeitos mais perversos desta histórica servidão é o estabelecimento
do sentimento de que o local, o território, a vida no município, não tem voz
nem capacidade de confrontar o sistema. Para José Silva, as instituições de
governo, da iniciativa privada e da sociedade civil precisam realinhar suas
ações entendendo que “nada é superior à vida”; que todo ser humano busca formas
distintas de saber o sentido de sua existência; que a dicotomia superior x inferior,
hemisfério norte x sul e desenvolvido x subdesenvolvido são invenções político-ideológicos
de dominação. E o que é mais afiado de se perceber: o desenvolvimento
sustentável não é conceito e sim uma promessa não cumprida!
Em relação ao desenvolvimento sustentável, acho que cada morador
ou território bem poderia definir o que quer na sua passagem pela terra, sujeitos
vivos que são, não arrastáveis como zumbis de seriados. Com certeza saberão explicar
o que não querem.
Então assim, sonho: quem
dera se os moradores do menor IDH do Brasil, Melgaço; o menor PIB per capita
brasileiro, Curralinho e o local de maior incidência histórica de malária,
Anajás, se juntassem para uma ação coletiva contra a EC 95, com
desdobramentos na dívida pública brasileira. Utilizar dos meios jurídicos para
questionar as últimas leis nocivas ao nosso Bem-Estar Social seria uma
tentativa interessante, formalizando que esta geração resolve gritar “Não!”
aos vinte anos de sufocamento de inocentes. “Estão nos matando aos poucos...”,
disse-me um amigo outro dia.
Então movimentemo-nos. Sejamos resultado e ferramenta de uma
nova era da Humanidade.
Método? Ter a mente e o coração abaixos da Linha da Cobiça é já
um bom começo.
Breves e Portel, 12 de julho de 2017.
[1] Engenheiro Florestal, consultor
socioambiental.
[2] Descolonizar
o Imaginário: Debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento
– organizado pelo do Grupo Permanente de Trabalho sobre Alternativas ao
Desenvolvimento apoiado pela Fundação Rosa Luxemburgo.
[3] Mestre que escreveu o livro Mercado ou Bens Comuns? O Papel dos Povos
Indígenas, Comunidades Tradicionais e Setores do Campesinato Diante da Crise
Ambiental/ Jean Pierre Leroy (autor); Maiana Maia e Julliana Malerba
(organizadoras). Rio de Janeiro: FASE – Federação de Órgãos Para Assistência
Social e Educacional, 2016, 44p.
[4] Atualmente 0,9% da população brasileira detém 60% da riqueza financeira no Brasil - http://www.viomundo.com.br/denuncias/brasil-debate-absurda-concentracao-de-renda-09-dos-brasileiros-detem-60-da-riqueza.html .
[5] Alberto Acosta descreve o extrativismo como
“uma modalidade de acumulação que começou a ser forjada em grande escala há
quinhentos anos” e que “esteve determinada pelas demandas das metrópoles – os
centros do capitalismo nascente”.
[6] Verificar em Bens e Serviços da Floresta: Ensaio-Prosa - http://www.recantodasletras.com.br/e-livros/5624741.
[7] No
anuário da Comissão Pastoral da Terra, Conflitos
no Campo Brasil 2016, o Estado do Pará foi aquele que apresentou maior
número de famílias envolvidas em conflitos por terra (18.419 famílias). A morte
dos 10 trabalhadores rurais em Pau D´Arco, em 2017, com tortura e fuzilamento
denota um Estado doente do ponto de vista psicológico, pois jura de pé junto
atuar ao público em geral, porém é privatizado - http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-07/chacina-de-pau-darco-no-para-nao-pode-ficar-impune-dizem-ativistas .
[8] Analiso
esta locução em http://www.recantodasletras.com.br/cartas/5654239
.
[9]
Recomendo ouvir o Programa Radiofônico Laudato
Si, episódio 15 - http://redamazonica.org/pt-br/laudato-cuidado-nossa-casa-comum/
.
[10]
Recomendo assistir este instigante e belíssimo desenho animado - https://www.youtube.com/watch?v=_N5KGcBDe_M
[11]
Oferto esta eterna consulta do voto sobre esta matéria dos senadores - https://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/12/como-cada-senador-votou-na-pec-55.html;
e deputados federais - http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/10/saiba-como-votou-cada-deputado-no-segundo-turno-da-pec-241.html
.
[12]
José de Souza Silva – La Innovación institucional decolonial y el´dia depués
del dessarrollo, capítulo 4° do livro Siembras
del buen vivir: entre utopias e dilemas possibles.
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